sexta-feira, 31 de julho de 2009

no meio de um trânsito enorme na ladeira do pacaembu que sobe para a doutor arnaldo, um carro sai de ré do estacionamento de um consultório médico e vem vindo também de ré na minha direção, sem parar mesmo enquanto eu buzino freneticamente, até bater de ré no meu pára-choque. perplexa pelo motorista não ter parado, olho com cuidado para dentro do carro e vejo, estarrecida, que não tem ninguém. o carro que bateu em mim de ré estava vazio. mais alguns minutos, eu já do lado de fora, aparece o dono, saindo do consultório. era o joel, um amigo de infância, que eu não via há muito tempo. ele tinha estacionado o carro, não tinha puxado direito o freio de mão e o carro veio fazendo o caminho contrário, até bater no meu. o joel: querida, há quanto tempo. e eu: joel, que bom te reencontrar. assim, de ré, o tempo fez o caminho contrário, acenou com o vazio e, rapidamente, o preencheu com o joel. acho que era disso que o einstein falava quando disse que o tempo faz curva.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

trem

pela primeira vez em mais ou menos trinta anos prestei atenção na letra de trem azul: coisas que a gente se esquece de dizer e coisas que ficaram muito tempo por dizer, na canção do vento não se cansam de voar. assim, ouvindo, me dei conta súbita de que essas coisas, as que a gente esquece de dizer e as que ficam muito tempo por serem ditas sejam, talvez, das coisas que mais dóem. os trinta anos em que eu não tinha ouvido essa letra vieram, pá, voando no vento e bateram na minha cara e eu lembrei de tantas coisas que eu não disse porque esqueci de dizê-las ou porque ficaram mudas dentro de mim.

terça-feira, 28 de julho de 2009

cornetto

uma e meia da manhã e eu resolvi que queria de qualquer maneira comer um cornetto de charge. o charge já é o chocolate em si. o amendoim, o chocolate, o crocante e a goma que puxa fazem com que ele se pareça mais com um produto de um tempo artesanal e não propriamente industrial. o nome coincide com o conteúdo de uma maneira que comer um charge, para mim, lembra uma atividade da ordem do poético. mas cornetto de charge é melhor. o cornetto também é uma invenção perfeita, de industrialização da casquinha e de evocação de uma infância perdida. aliás, o charge lembra um torrone que eu comia no parque trianon com minha mãe e de que só eu me lembro em toda a cidade, o torrone raquel. circulamos por toda a zona oeste atrás de uma geladeira da nestlé, mas só tinha da kibon, cujo mega, mesmo o de chocolate belga, não chega aos pés do cornetto de charge. numa padaria que fica aberta vinte e quatro horas havia uma geladeira da kibon e outra de uma marca italiana chique que vende picolés de capuccino e cookies com menta a seis reais. acabei comprando um desses. não chega aos pés do cornetto de charge. muito pouca coisa chega.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

véspera

sonhei com uma coreografia: enquanto alguém tocava somente as notas suficientes para se reconhecer que se tratava do chorinho odeon, bem lentamente, nota por nota (tã.....tã......tã......tã....tã), circulavam pelo palco, simultaneamente e em grande velocidade, vários personagens típicos de algum circo de filme em preto em branco: uma bailarina de tutu dava muitas piruetas, um mágico punha e tirava seguidamente a cartola, um domador ranzinza tocava um apito, um ciclista pedalava uma bicicleta de uma roda só. a música lenta e os movimentos rápidos estabeleciam um contraste que tornava o sonho ainda mais onírico, se é que isso é possível. sei que não vou realizar esta coreografia e que ela vai permanecer como um desejo à véspera de acontecer, como talvez sejam todos os sonhos. que pena, achei tão bonito.

sábado, 25 de julho de 2009

dor

depois de uma tarde de bicicleta com o david, o dia seguinte trouxe dores fortes nas costas. manco, arrasto a perna, nenhuma posição alivia muito. a dor não é escandalosa, mas contínua e precisa, parecendo executar um trabalho planejado e paciente, embora gratuito. o mundo, nos dias frios e nublados, e na posição horizontal em que fico a maior parte do dia, é um mundo diferente. as coisas como que se arrastam, pesadas e as pessoas viram personagens de um livro que estou lendo ao vivo. o que você quer comer? macarrão. quer que traga um suco? quero, por favor. de repente, no meio do suco, quero saber: o que você nunca perdoaria em alguém? suco, conversas sérias, sonhos estranhos se misturam para quem tem uma dor. ela vai passar, mas, para todos os efeitos, vai deixar sua inscrição e passagem no líquido entre as vértebras e na minha vida. as dores falam.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

garfo

os dois últimos livros que li, until the end of the world, do david grossman, e patrimony, do philip roth, falam, correspondenemtente, sobre o medo da perda de um filho e o processo lento de acompanhamento da morte do pai. em pouco tempo vivi essas duas experiências contíguas e, de alguma forma, contrárias. mas, de qualquer forma, vivi bem próxima de sensações relacionadas à morte. foi difícil, mas bom também. não é exatamente que tenha compreendido melhor o que é a morte ou como perder alguém, mas principalmente aprendi um pouco mais (creio) a envelhecer. o inevitável do envelhecimento pode terminar por significar algo bom: o melhor de alguém é mesmo a maneira como se fala de uma barbearia que havia na esquina da rua lexington com a terceira, ou será que era a quinta? o melhor é como se segura o garfo, como se arruma o batom no reflexo de um garfo durante o jantar. e isso só mesmo a velhice permite saber. (ninguém arruma o batom em garfo, mas sim em faca ou colher e isso já é sinal de velhice também)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

etiqueta

abriu uma fábrica de etiquetas, aparentemente clandestina, do lado da minha casa. passando de carro ao lado, eles tinham deixado latas e latas para o lixo recolher. desci para olhar e havia centenas, milhares de rolos de etiquetas de todas as cores, formatos e tamanhos, todas intactas. etiquetas redondas e cor de rosa, quadradas e vermelhas, retangulares e brancas. havia inclusive um rolo com etiquetas dizendo chave de segurança. milhares delas. mas o melhor de todos é um azul turquesa, ainda sem o corte da etiqueta, como se fosse um rolo de contact estreito. o que alguém pode esperar mais do que essa sorte na vida?

terça-feira, 21 de julho de 2009

tailleur

ela era bonita e sensível e casada com um membro da guarda nacional britânica, rico e austero. ele só usava ternos e ela, tailleurs. um dia ele a traiu. ela tentou o suicídio. na clínica de reabilitação, ela conheceu um chef de cozinha italiana, que também tinha tentado o suicídio, parece que por depressão. apaixonaram-se. hoje eles cuidam de um dos maiores resataurantes de comida italiana da inglaterra, cuja principal freguesa é, justamente, a rainha elizabeth. não importa se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida; também não acho que seja a improbabilidade que torna essa história tão bonita. penso que quanto mais a vida se afasta desesperadamente da morte, mais morta ela fica. é preciso ter a morte por perto como possibilidade: os fins, as perdas, o tempo. sem isso parece que a vida fica como um tapete liso de ternos e tailleurs.

domingo, 19 de julho de 2009

gengibre

comprei um ralador de porcelana pequeno de uma face só. parece que sua função principal é ralar gengibre. ele é lindo e se parece com alguma ferramenta japonesa de uma dinastia no, em que os cozinheiros imperiais se esmeravam na preparação de pratos raros e cheios de especiarias finas. resolvi então fazer uma sopa de abóbora com gengibre. fui ralar o gengibre bem fresco, ainda úmido e cheiroso, e todas as fibras da raiz ficaram entaladas no ralador. precisei ficar batendo e retirando com um palito. mas enquanto retirava minuciosamente as fibras com uma espécie de estilete que inventei com o palito de dentes, fiquei pensando em muitas coisas boas e ruins, misturadas ao apelo da tarefa detalhada, ao cheiro forte e à expectativa da sopa. é claro. deve ser para isso que serve esse ralador.

sábado, 18 de julho de 2009

losango

tenho certeza de que nada faz sentido e também de que faz todo sentido dobrar os guardanapos em forma de losango para as visitas de um jantar.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

nada

enquanto leio o narrador do livro o planeta do sr. sammler, de saul bellow, reclamar da sua superestrutura explicativa, uma tristeza que advém de uma obsessão de tudo interpretar, a maria canta no banheiro: agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar, do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

entrevista

quase consegui entrevistar a sophie calle, mas não deu certo. passeando por uma outra exposição, os monitores me seguiam obsessivamente com os olhos. finalmente um deles tomou coragem, se aproximou de mim e me abordou: desculpe, mas você é a sophie calle? mais si, je suis sophie calle. mais excuzes mois, je ne parle pas portugais. sô um pouc, com sotac. ah, mas você fala bem português. ê qu eu estudê um poc. ah! e você está gostando do brasil? muit. ê muit interressant. tiraram fotos comigo e ficaram felizes. também fiquei. não só a entrevistei como a conheci por dentro e fui um trabalho dela que nem mesmo ela chegou a saber. o mundo recompensa os entrevistadores desvalidos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

mãe

david grossman já tinha escrito praticamente todo o livro until the end of the world antes da morte de seu filho mais velho, dentro de um tanque do exército israelense. o livro também é sobre o medo da perda de um filho em seus últimos dias de exército, por uma mãe muito ligada a ele. israel surge, nesse livro, como uma terra em que todas as pessoas, israelenses, árabes, palestinos, são de alguma forma exilados. um país de exilados, mesmo que o exílio seja dentro e não fora. às vezes, o exílio interno é realmente pior do que o outro, o literal. como tolerar estar fora de algo de que você é parte? como ser parte de algo do qual você está sempre do lado de fora? como ser mãe de um filho que parte para a guerra? quando o mundo para o qual os filhos partem não é uma guerra? ser mãe é também uma forma de exílio.

sábado, 11 de julho de 2009

chuva

embora a maioria das gramáticas ainda comece afirmando que os termos essenciais da oração são o sujeito e o predicado, as mesmas gramáticas, mais adiante, fornecem como exemplo de tipos de sujeito, a oração sem sujeito. mas essa incoereência normativa não tem a menor importância. a oração sem sujeito é real e linda e mais lindos ainda são os exemplos clássicos desse tipo de oração oferecidos pelas gramáticas. fenômenos da natureza: amanhece, anoitece, chove. chove. não há sujeito praticando a ação, nem objeto a recebê-la. o verbo não transita; estaciona. é só a própria coisa acontecendo; acontecimento puro. o som e o significado em perfeita harmonia e coincidência. a natureza agindo por si mesma e nós, enfastiados de tantos sermos sujeitos, só a observá-la. queria muitas orações sem sujeito. só verbos soltos pingando.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

gol

em mais ou menos quatro horas vi o ronaldo fazer três gols, o james taylor cantar fire and rain, a lua cheia do quintal de casa e ouvi glenn gould tocando bach. às vezes é muito bom fazer parte desse grupo que, de acordo com o próprio james taylor, é o único capaz de se perder. perder-se nos salva.

terça-feira, 7 de julho de 2009

clarice

vi: um cego carregando uma guitarra, uma barraquinha de churros com potes grandes de mostarda dentro, várias galinhas juntas e presas dentro de uma mesma gaiola batendo com o bico contra as grades, um mendigo deitado sobre um colchão com um arranjo de flores do lado. tudo enquanto esperava o sinal abrir, num mesmo canto de uma mesma rua. podia ficar lá para sempre olhando.

domingo, 5 de julho de 2009

beijo

ela estava vestindo um conjuntinho de calça verde clara e blusa de malha verde mais escura com um casaquinho verde também. pintou o cabelo, penteou e esperava por nós sorridente na calçada. andando na rua, eu a abracei por trás e lhe dei um beijo na cabeça. ela me abraçou também. agora que a melhor amiga está doente, ela vai sozinha ao cinema. disse assim: vou eu comigo mesma. mas você não sente falta das amigas? não muito. todas têm uma doença, dói aqui, dói ali, então vou sozinha. olha para a leda e fala: não gosto dela! e dá um beijo. ela disse que eu sou a mais beijoqueira da família. gosta de tudo: da comida, do lugar, da companhia. paga a conta toda e acha barato. eu fico olhando para ela: como você está aqui, mãe? que bom ter você comigo.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

bola

em alguns dias, talvez sob a influência também da temperatura do ambiente e da coloração do céu, forma-se uma pequena bola endurecida, porém imaginária, na cavidade entre os peitos. ela contém, se a apalparmos com cuidado, o conteúdo e o tamanho exatos de uma pequena angústia (angústia significa passagem difícil). não se pode apalpar demais, no entanto, sob pena de que a bola endurecida cresça muito e gratuitamente, ou se desfaça sem que se possa conhecê-la melhor. é somente uma pequena angústia; não grande nem grave. pequena e medianamente companheira. deve-se tocá-la com sutileza: lentamente, ela nos dirá a que veio, e, também com lentidão, se mantivermos delicadeza no diálogo e soubermos escutar seu silêncio, ela encontrará seu caminho pela passagem difícil daquela cavidade e atravessará para o outro lado. para fora ou mais para dentro ainda, não importa. mas ela passará.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

canção

numa aula do zé miguel wisnik e do arthur nestrovski sobre a canção, fiquei pensando como é bom que a gente possa chamar nossos dois maiores compositores de caetano e de chico. não precisa de veloso nem de buarque. os nomes caetano e chico alçam a brasileirice a uma altura cultíssima, ao mesmo tempo em que alegremente rebaixam a alta cultura para o nível familiar, de conversar com o vizinho na porta de casa. como é sofisticado o povo que pode cantar em coro iracema e o homem velho.