sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

o

o excesso, a falta, a intensidade, o abridor de lata que não serve para canhotos, a militância, o sexo, a burrice, a ginástica, a aula que ficou aquém, os olhares, o truque, a salada com gorgonzola (ele falava gongorzola), o palito de dentes, o peso (não esse, o outro), o café, a casca, o dinheiro, a chatice, a teimosia, o olha isso, olha, olha, por favor, olha vai, o mais uma coisa, e mais uma coisa, a quantidade, o caminhãozinho, o elefante que eu não sei montar, a bicicleta, a noite que virá de qualquer jeito e os preços do carrefour, alguns centavos mais barato, meu deus, o cabide que lá custa onze reais, mas foi feito na china, e eu e o escravo, o cabide, o carrefour, o carrefour, meu deus, o carrefour.

domingo, 25 de janeiro de 2015

ingenuidade

me emociono, sem saber muito bem por quê, quando leio, num texto de lévinas, a frase: "não a ingenuidade, mas a inocência". vou atrás da origem de ingenuidade, que pensava ter a ver com "ingenuity", do inglês, que significa " engenho". nada a ver. ingenuidade vem de "genus", comum, e ingênuo é o homem nobre, incomum, que nasce livre porque é genuinamente melhor. puta merda. então foi por isso que me emocionei com o lévinas. o ingênuo é bom porque se crê congenitamente melhor. já "inocente" é, só e simplesmente, sem maldade.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

eu

o terceiro volume do romance "minha luta", de karl ove knausgard, começa se perguntando quem é o "eu" das fotos que guardamos da nossa infância. por que aquele "eu" é "eu"? se nos mostrassem a foto de outra criança, dizendo que aquele é "eu", também não poderia ser? o autor chega até a sugerir que tivéssemos, cada um, nomes diferentes para idades diferentes, porque, afinal de contas, nada, além do nome, nos identifica naquela foto. ser "eu", nessas condições, seria somente uma abstração. mas o que identifica o "eu" de agora? provavelmente, só o fato de que ele coincide com a enunciação atual da palavra "eu". esse "eu", assim como aquele, tampouco existe e não passa de dois sons, "e" e "u". por outro lado, karl ove, a covinha no queixo, a verruga na orelha, o olhar distraído, a coca cola no gargalo, um cílio torto, a blusinha de cambraia, a sola do sapato suja de cocô de cachorro, isso tudo é de quem, hein, karl ove? responde agora, quero ver!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

paz

quem visa aos fins e usa o meio como instrumento para chegar a eles esquece os sentidos do meio, que são inúmeros, processuais e mutantes. quem visa aos fins pode dizer que quer a paz, mas não pode e nem sabe querê-la, porque os fins não comportam a paz. porque o fim só tem um lado e para se chegar à paz é preciso ter muitos. a paz fica só no meio e não no fim.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

literatura

sabe quando, num desenho, o desenhista deixa uma parte vazia e a gente deduz, dela, o pedaço que está faltando? então. é disso que eu gosto.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

ovo

o ano n'ovo cresce bem devagar, como fazem as coisas que ficam nos ovos. por enquanto, ele ainda está clarinho, clarinho, quase branco, de uma transparência viscosa e pegagenta. o ano n'ovo acabou de ser concebido e parece meleca. logo ele começará a amarelecer, encorpar, liquefazer e suas partes vão começar a se distinguir, as fronteiras se delinear. no meio do processo, as fronteiras ficam bem claras. como são chatas essas fronteiras bem delimitadas do ano n'ovo. mas o que se há de fazer? é assim com tudo o que quer nascer. vai chegar uma hora, enfim, em que, de tão bem configuradas as formas, o ano n'ovo vai querer sair para fora da casca. e, pronto. lá se vai outro ano n'ovo de novo se preparar para virar passarinho. e a casca do ovo, quebrada, ficará vazia do ano, já velho, que partiu para fora. é o fado das cascas e dos anos, dirá alguém mais sabido. e outro alguém, mais perplexo, responderá: puxa vida, mas tudo sempre tem que ser assim?