quarta-feira, 31 de agosto de 2011

escrita

às vezes acho que sócrates tinha razão, ao condenar a escrita. guardar ideias é bom, porque a memória não é capaz de lembrar de tudo o que nos vai pela cabeça e porque podemos utilizá-las em ocasiões e experiências inesperadas. mas, também, como é bom esquecê-las. permitir que elas se transformem sozinhas em outras coisas sobre as quais não temos nenhum controle, não deixá-las ali paradas em cadernos ou folhas de papel ou então simplesmente nunca mais lembrar delas, ignorá-las, até que um dia, desavisadamente, elas reapareçam e nós então digamos: puxa, já tive essa ideia antes. por onde será que ela andou? por que reapareceu agora?

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

infinito

qual é a diferença entre infinitude e infinidade? a infinitude se refere à extensão e a infinidade, à quantidade. pode-se querer viver a infinitude do momento por uma infinidade de anos. como o infinito, que é inconcebível, se deixou flexionar tão categoricamente pela gramática, a ponto de se dividir em extensão e quantidade? a gramática é mesmo isso: uma ordenadora do infinito.

sábado, 27 de agosto de 2011

taxa

as operadoras de telefone móvel inventaram o termo portabilidade. eu inventei a insuportabilidade, que é a taxa variável que algumas pessoas têm de tornar todos os encontros insuportáveis.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

monge


maurice blanchot diz que há momentos em que não enxergamos porque podemos ver, mas porque não podemos não ver. nesses casos, a imagem tem uma presença tão forte que é como se ela criasse nosso sentido de visão, que, mais do que vê-la mecanicamente, a enxerga como um chamado, uma necessidade. ver, nestes casos, vem mais da coisa do que dos olhos. com o monge, de kaspar david friedrich, é assim.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

motivo

estou lendo um ensaio em que david grossman procura explicar por que escreve. dentre muitos outros motivos, diz que um o convence mais do que todos: o desejo de ser gisella, uma de suas personagens. argumenta que o que mais o seduz é o desejo de ser o outro. fiquei pensando nisso e acho que o que mais me importa, ao escrever, é saber coisas que eu mesma sei e que não sabia que sabia. quando escrevo, sou muito melhor do que sou. descubro e digo coisas que jamais seria capaz de dizer falando. quase nunca sei o que vou escrever quando sento para fazê-lo. na verdade, escrevo para saber o que vou escrever.

domingo, 21 de agosto de 2011

alegria

na adolescência, fazia parte de um grupo chamado "cinquenta cáries numa boca só". no colegial, criei uma revista chamada "bom apetite", cujo símbolo era uma grande boca aberta, pronta para devorar. o fundo de tela do computador do david é uma boca enorme, do escher. estou agora lendo textos teóricos sobre antropofagia oswaldiana e vou concluindo que, em sua utopia anti-messiânica, sem redenção final,a devoração seria a entrega de cada um ao outro e o desejo de consumir-se consumindo. um egoísmo generoso, uma generosidade egoísta. os nove afinal provados pela alegria.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

melancolia

não reconheço, na atitude final de justine, no filme melancolia, uma atitude melancólica. o melancólico não acha que sabe as coisas, que conhece antecipadamente o que vai acontecer, não se satisfaz nem se alivia com o que pensa que sabe. sua cumplicidade com o final do planeta, a pacificação de sua dor pela certeza da fatalidade do acaso são muito mais maníacas do que depressivas ou propriamente melancólicas. não gosto da forma como ela trata a irmã com superioridade e desdém.o melancólico carrega saturno dentro de si e essa objetivação do planeta melancolia, esse planeta tão externo que aparece no filme tem um lado alegórico que não me convence.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

amiga

olho nos olhos de uma amiga e vejo que, para ela, o tempo passou e passa com serenidade, apesar das turbulências. sei que essa serenidade vem também do fato de ela estar olhando e vendo, nos meus olhos, a mesma coisa. nesse encontro em que me vejo dentro da película transparente dos seus olhos e ela dentro da minha, fica uma das melhores experiências da idade mais do que adulta: uma amiga.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

parênteses

quem foi que disse?
leitura de textos meus e de joão bandeira, na casa do saber. quarta, dia vinte e quatro de agosto, às vinte horas, seguida de conversa. rua mário ferraz, quatrocentos e quatorze.telefone: três sete zero sete, oito nove zero zero. espero vocês.

domingo, 14 de agosto de 2011

oitocentos

um prato de nhoque recheado com ossobuco custa, no fasano, cento e dois reais, ou algo próximo disso; e vem só com dez nhoques. hoje fiz o mesmo prato. descontando minha inépcia - apesar de ter ficado bem gostoso - o serviço, os talheres, o ambiente e mais algumas coisas, fiz cerca de oitocentos reais de nhoque.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

vez

a melhor forma de saber mais é sabendo menos e, para saber menos, é preciso saber cada vez mais.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

alma

eu: o pronome pessoal do caso reto; a integralidade do emissor que percebe o mundo, expressando-se diretivamente, sem mediações. te: o pronome oblíquo na segunda pessoa; a relatividade do outro, o outro visto transitivamente como receptor do eu inteiro; a entrega. amo: a pessoalidade primeira e a temporalidade presente de uma ação que é mais que ação; é ação em forma de estado e reação; é a imersão da alma no corpo. como dizer isso impunemente?

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

orgulho

na origem, a palavra orgulho significa excelência. atualmente, associam-se a este conceito as noções de honra e valor. o motivo para que excelência derivasse para honra só pode estar no fato de que o praticante da excelência se sente honrado pelo resultado de sua ação. trocou-se, assim, o procedimento e a potência pelo resultado. o dia do orgulho heterossexual seria, desta forma, o dia em que os indivíduos se sentem honrados por terem, supostamente, feito de forma excelente uma escolha sexual. se eles são excelentes heterrosexuais, por que precisam orgulhar-se disso? por que sentirem a honra de serem o que, segundo dizem, já são? isto deve querer dizer que precisam de reconhecimento, pois têm temor de falhar, ou ainda, por terem superado alguma outra dificuldade. todo aquele que se orgulha de um resultado, sabe que poderia ter fracassado e por isso se orgulha. ou seja, todo heterossexual orgulhoso de seu feito, teme não ser heterrosexual e, por isso, precisa orgulhar-se.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

fator

a moça do rádio disse que um ministro falou: "isto se deve ao aumento dos impostos e diversos outros fatores". sempre fico pensando no significado de "diversos outros fatores", "etc. e tal", "muitas outras variáveis", especialmente em discursos oficiais, científicos e políticos. é a capa retórica para dizer: "não sei qual, mas deve haver mais algum motivo".

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

presença

por algum tempo (pouco que seja) estar longe de si, ausente de si, sem saber qual é o sentido de se ter o nome que se tem, o tamanho, o peso, o volume. ser uma presença sem ideias e passar.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

irmã

moishe schick, iugoslavo, imigrou para israel em mil novecentos e quarenta e nove. foi morar em um kibutz, onde trabalhava como eletricista. lá, ele teve cinco filhos, com uma mulher tcheca que conheceu num campo de refugiados. em mil novecentos e oitenta e três, morreu de câncer no pulmão. hoje, depois de uma busca entre obsessiva e mágica, falei com sua filha mais nova, shlomit, que ainda mora no kibutz e é psicóloga. contei a ela que seu pai foi namorado de minha mãe, antes da captura pelos alemães, em mil novecentos e quarenta e quatro. ela disse que poderia ter sido filha da minha mãe e eu, que poderia ter sido filha do seu pai.de certa forma, nós somos.