sábado, 30 de julho de 2011

maysa

nós duas nos reencontramos, depois de algum tempo sem nos vermos, e ficamos a conversa inteira a ponto de chorar. não que houvesse motivo. era porque o tempo se arredondava de tal forma, que o passado mergulhava no círculo e quando ele saía de lá, já era o presente, que então mergulhava de novo e voltava a ser passado. o que dizíamos era compreendido antes de terminarmos a fala; o que não dissemos também se ouviu e se aceitou. os livros que lemos em comum e também os que não lemos ficaram nos esperando para entrarem na conversa. esperem, nós dissemos, a vez de vocês virá. ela é minha amiga e eu sou amiga dela.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

carro

o joão e eu temos carros iguais. ele disse que pegaria o meu carro para sair, mas não pegou. quando fui sair, entrei no meu próprio carro, achando que era o dele. fiquei dirigindo e pensando: o carro dele é realmente mais macio do que o meu; e está bem mais limpo também; pena que não tem som (o meu tem e o som estava lá); as marchas deslizam com muito mais facilidade e o motor não faz barulho.

terça-feira, 26 de julho de 2011

sujeito

até o século treze, sujeito queria dizer súdito, subordinado, aquele que se submete. dali em diante, passou a significar pessoa indeterminada. é certamente daí que deriva o nosso sujeito, agora não mais como súdito, mas justamente o oposto, como aquele que é dono de si mesmo. mas não espanta e, ao contrário, me agrada, que, na ideia original de autonomia do sujeito, haja também a ideia de submissão.para ser autônomo é preciso saber servir, ou melhor, a autonomia não tem graça quando ela exclui servir. como é bom colocar-se à disposição, fazer para alguém e, de vez em quando, até desaparecer para que o outro apareça.

sábado, 23 de julho de 2011

exceção

não suporto o argumento, tão comum e aparentemente convincente, de que se uma exceção for aberta a uma situação, então ela terá que ser aberta a todos. não é absolutamente assim. exceção é exceção. quando ela se abre a alguém, ela é particular. um precedente não autoriza a universalização da exceção. o legal de estar com as pessoas é tratá-las individualmente e considerar cada circunstância como única e não como uma possibilidade de que outros também tentem aproveitar.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

turismo

um roteiro de são paulo para turistas tortos: rua três rios, no bom retiro, onde tem uma doceira sérvia com strudel de papoula e de nozes; rua correia de melo, no bom retiro, onde tem o restaurante shoshana e se come shivapsheshe, com carne moída bovina e suína misturada;rua afonso pena, no bom retiro, onde tinha um prédio com mural do aldemir martins, que por isso era considerado o prédio mais chique do bairro; rua guarani, no bom retiro, onde tem a mercearia menorá, que tem pão preto como fazia o seu jaime; o largo do arouche, porque é bonito e o parque da previdência, porque é pequeno, lindo, silencioso e fica perto da minha casa.

terça-feira, 19 de julho de 2011

ideograma

a escrita fonográfica franqueia a compreensão a todos, de forma fácil e razoavelmente intacta, em todas as épocas e gerações. tudo bem. a escrita ideogramática é mesmo mais elitista e complicada. mas como não invejar um alfabeto em que a palavra "não" é um ideograma de uma planta cortada na base e a palavra "sim" é o ideograma de ser?



domingo, 17 de julho de 2011

frustração

um dos índices mais significativos de como cada um é inapelavelmente solitário é a tentativa sempre frustrante de contar um sonho - bom ou ruim - a alguém, mesmo que seja alguém bem próximo. durante o sonho, vive-se com máxima intensidade e frescor cada cena, cada sensação, especialmente quando se trata de um pesadelo, quando o horror parece interminável, completo. acorda-se e agarra-se a tentativa de contar. nesse instante, parece que contar será tão certo e poderoso quanto o sonho. e aí, a revelação: as palavras não alcançam nem uma fração do que se viveu e o outro diz, no máximo: nossa, que coisa!

quinta-feira, 14 de julho de 2011

babel

não entender o que se fala pelas ruas, não ser conhecido por ninguém, não saber onde ficam os lugares, não conhecer os costumes locais e comportar-se de forma desajeitada: essa é a bênção de babel e abençoada seja a ambição humana por essa punição libertadora.

terça-feira, 12 de julho de 2011

londres

londres: a cada seis minutos passa um ônibus para trafalgar square, mas só às terças, entre as doze e as doze e quarenta e quatro. depois desse horário, até às dezesseis e treze, passa um a cada quatro minutos. para se sentir nervoso, só aos sábados, entre as quinze e as quinze e dezessete, e só por nove minutos. a cada três minutos passa alguém chateado, entre as ruas brick e st. george. se quiser dar um grito, pode; mas só em altura moderada, em leicester square, no primeiro domingo de um setembro nublado e só às sete e doze. para outras informações, ligue para o serviço de atendimento, que só funciona hoje, entre agora e daqui a dois minutos, mas só às segundas no primeiro horário da manhã, se houver mais de sete nuvens no céu.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

consumo

consumir: mercadorias, lugares, obras de arte, é manter-se como centro da circulação das coisas e do tempo no mundo. a cada sensação de consumo realizado, é como se as coisas, o objeto consumido, mesmo que seja uma paisagem, tivesse sido feito exclusivamente para o eu. o tempo passou e tudo aconteceu para redundar no corolário final: o eu. depois que o eu consome aquilo, tudo bem, aquilo já pode deixar de existir. pode desaparecer, se quiser.

terça-feira, 5 de julho de 2011

ferida

numa entrevista, anish kapoor diz que existem basicamente dois tipos de artistas: os que mostram a ferida e os que buscam curá-la de alguma forma. de qualquer maneira, os dois concordam que a ferida existe.nada melhor do que isso para responder aos críticos de uma arte que, para muitos, é ingenuamente otimista. não é otimismo. é só uma constatação. está doendo; se soprar, alivia um pouco.

sábado, 2 de julho de 2011

ideia

ideia meia boca de nome para uma exposição sobre tudo o que aconteceu desde o final do século dezenove até hoje: de gogol a google.