segunda-feira, 31 de maio de 2010

lagarta

acho que estou chegando à conclusão de que, no amor, se a namorada, a parceira, a mulher, enfim, não for, como no poema do manuel bandeira, uma "lagarta listrada", dificilmente o namoro, o casamento vai dar certo. da mesma forma, mas sempre com a precedência feminina, é preciso que o namorado, o parceiro, o homem enfim, fique constantemente dizendo a ela que "ela parece uma lagarta listrada". o homem, para que o namoro dê certo (não gosto da palavra relação e nem de relacionamento) deve ser um apreciador de lagartas listradas.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

ipiranga

minha irmã tinha me explicado que quando os dois ponteiros do relógio coincidem, já eram quinze para as nove. acordei às seis e meia da manhã e, como os dois ponteiros estavam no mesmo lugar, achei que eram quinze para as nove. era um domingo. levantei, peguei um chapéu que eu tinha feito com jornal, fui para a sala, comecei a marchar e a cantar bem alto, para todos se levantarem e aplaudirem: "ouviram do ipiranga as margens plácidas"...minha irmã acordou e brigou comigo, mas dessa parte eu nem lembro direito.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

tartaruga

homeopatia é "mesmo pathos", ou "mesma paixão", ou "mesma patologia". seres de aparências diferentes compartilham, segundo essa ideia, semelhanças substanciais, às vezes invisíveis ao olho nu. então alguém me diga: por que se parecem tanto uma tartaruga e uma flor?

domingo, 23 de maio de 2010

silêncio

acho que uma das maiores e mais brutais formas de exercer o sadismo, na profissão, é travesti-lo de neutralidade, de ciência ou de serviço informativo. esses escudos servem para proteger uma alma "sacana" de quaisquer perversões. o silêncio, para mim, também é uma das piores formas de exercer o poder. contra ele, não há rebeldia. o silencioso profissional é uma espécie de covarde. como prefiro a possível covardia da condescendência, bem mais exposta e explícita, permitindo brechas e réplicas. mas, acima de tudo, o que prezo, no trato profissional, é a não neutralidade. dizer elegantemente o que se pensa e não se escorar em críticas vicárias. saber estar ao lado de quem se gosta, sem protecionismo. saber estar ao lado de quem não se gosta, sem armadilhas.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

dança

na dança, é como se os corpos prescindissem das pessoas que os movimentam. como se fossem corpos sozinhos, cujo movimento é igual ao de uma abelha, um jaguar, um beija-flor. nada sabemos sobre ele. só ficamos olhando atônitos, tentando acompanhar um ritmo que fica entre a natureza e o artifício, em que o mais artificial, construído, planejado, parece ter brotado ali, do nada. os dançarinos são bichos com cara de gente e, a mim, isso é o que mais estranha e fascina.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

mar

estive no rio e vi o mar. vi que ele não tem portas, janelas, ombros ou cotovelos. nele, nada se articula. tentei contar uma história para ele. ele não me ouviu, mas disse: por que você precisa de verbos para falar?

segunda-feira, 17 de maio de 2010

calcanhar

vi que meu calcanhar estava rachado e antes de ir para o banheiro raspar, lavar e hidratar, fiquei olhando atentamente as rachaduras sob uma luz forte. deveria eliminar alguma linha que esteve lá, embaixo de uma trave de futebol, no papel de goleira, aos oito anos de idade, onde me senti talvez no lugar mais deslocado e errado onde já estive? e será que ainda estava lá inscrita a marca do hotel quitandinha, em petrópolis, onde engoli um pedaço do vidro da garrafa de água tônica, que não entendia como minha mãe podia gostar? achei que não. o pé não deve guardar impressões tão fundas. mas elas formavam contornos em espiral, como as linhas digitais; é capaz que ainda guardassem as cambalhotas da praia de itanhaém. lavei, no fim. mas não com muita força.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

lembrança

lembrar-se é buscar uma lembrança no passado, de forma localizada e é também o momento em que uma lembrança súbita retorna à superfície da memória. se quero me lembrar de alguma coisa, como um nome ou um lugar, aciono uma cadeia de associações. por exemplo, para lembrar o nome da scarlet johansson, lembro de scarlet o'hara e do músico kevin johanssen. esse processo, inevitavelmente, causa encadeamentos esdrúxulos, às vezes inexplicavelmente com a mesma pessoa ou rua, como o hábito que tenho de chamar a kathleen turner de catherine o'connoly. já com relação às lembranças súbitas, que assomam sozinhas à memória, sem necessidade de serem evocadas, não sei por que, mas toda hora me lembro de mim mesma pequena, dentro de um elevador, com um primo muito alto de minha mãe, que vinha dos estados unidos, trabalhava na nasa, e que, por essa razão, eu achava que era um astronauta. minha emoção e curiosidade foram tamanhas que, agora, quarenta anos depois, lembro pelo menos uma vez por semana, sem querer, de que andei de elevador com um astronauta. sem falar de que também lembro do gosto da esfiha com zahtar do farabud e do david pequeno colocando sozinho a chupeta na boca, para ver se parava de chorar.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

quinta-feira, 6 de maio de 2010

salsicha

meu pai já estava muito doente. era dia dos pais. comprei flores e salsichas. cheguei até ele, que já quase não falava, e entreguei as flores. ele disse o que eu já sabia: prefiro salsichas. eu já tinha as salsichas. dei um monte para ele. ele sorriu.

terça-feira, 4 de maio de 2010

terra

hoje, durante uma aula, pela primeira vez, me dei conta de que a terra do pai é a pátria e de que a língua nativa é materna. é verdade. nada mais maternal do que a língua, esse colo continente e conteúdo, com uma prontidão entre sufocante e libertadora. e nada mais paternal do que o lugar. mudo e certo, ele nos pede para ficar. muitas vezes, é por isso que queremos sair. já a mãe, nossa língua, falante e insegura, está sempre a nos acompanhar.

sábado, 1 de maio de 2010

coisa

uma coisa linda é qualquer suíte para violoncelo do bach; uma coisa boa é a abobrinha recheada com carne moída da benedito calixto; uma coisa feia é laquê; uma coisa ridícula é escrever melhor do que o livro sobre o qual se escreve e uma coisa engraçada é a minha gata pensando que o próprio rabo é uma bolinha.