sábado, 29 de dezembro de 2012

aparecimento

o a de aparecer é a potência transformada em ato. como com a manhã o amanhecer, com a noite o anoitecer, também é assim com o parecer que, acrescido do a, vem à luz. apareceremos!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

família

abrão tinha três mulheres, traiu a principal com uma escrava e, assim que a escrava engravidou, expulsou-a de casa. isaac tinha dois filhos, sendo que um deles, às vésperas da morte do pai, o enganou, fingindo ser o outro irmão que, aliás, era o preferido. já jacó, por sua vez, gostava mais de josé, o caçula, que foi vendido pelos irmãos a um mercador. jesus era filho de uma virgem, nunca se casou e tinha uma história enrolada com madalena. daí os caras vêm falar de família normal. família que, por sinal, quer dizer, em latim, agrupamento de fâmulos, ou servos. ah, gente, vão se catar.

sábado, 22 de dezembro de 2012

deus

tenho, talvez a despeito de mim mesma, algo como um sentimento religioso. acontece que, para mim, deus, além de habitar dentro, e não fora do eu, ainda contém boas doses de medo, raiva, orgulho, inveja e vaidade. sinto, e não penso, que só assim essa ideia de deus é capaz de nos proteger, que é o que mais queremos dele. pois somos pó e só algo que aceite, contenha e que também seja pó pode estar conosco.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

gúgou

freud descreveu os procedimentos do sonho como sendo de deslocamento e condensação. da mesma forma, o gúgou é também um sonho: desloca e condensa. estamos acordados numa hipnose vulcânica, um sonambulismo réptil. somos nós os mestres e o conteúdo desse sonho falaz e alegre, com cintos de couro, viagens para a malásia, verdi, cantatas, buracos de ozônio, tratores para a lavoura de uvas, cinquentenário de poetas, maldições dantescas e eu.

domingo, 16 de dezembro de 2012

corinthians

salve o corinthians, porque ele é o campeão dos campeões, eternamente dentro dos nossos corações. salve o corinthians, porque ele tem tradição de glórias mil e é o orgulho dos desportistas do brasil. seu passado é uma bandeira, seu presente é uma lição e ele figura entre os primeiros do nosso esporte bretão, nacionalidade cujo futebol, aliás, o corinthians transformou em esporte brasileiro e cujo futebol derrotou, tonando-se campeão mundial, hoje, dia dezesseis de dezembro de dois mil e doze, quando é também aniversário de vinte e quatro anos da minha amada filha leda, tornando, portanto, esse dia muito feliz. assim sendo, o corinthians grande, sempre altaneiro, é do brasil o time mais brasileiro.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

fila

atrás de mim, na fila do supermercado, uma japonesa de meia-idade espia para ver se a fila está grande. digo a ela que é rápido e, pela resposta, percebo que ela fala português com dificuldade. ela olha uma revista "nova" com a deborah secco pelada na capa e diz: é jovem, né, bonita, precisa ficar pelada porque depois de velha cai tudo, né? eu digo: ah, mas tem vantagens em envelhecer também! ela toma um susto, dá um pulinho, me olha com os olhos bem arregalados e diz, hesitante, com a boca entreaberta: - qual?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

falácia

um texto mais longo para variar e também para tentar mostrar a falácia das generalizações de alguém que se diz filósofo. o que fiz foi somente dizer as mesmas coisas que foram ditas em sua coluna de hoje,dez de dezembro de dois mil e doze, só que ao contrário.

A "má qualidade de vida" é uma das novas formas de liberalidade, sendo o machismo uma outra (o machismo é a nova libertação da sexualidade).

A infelicidade e o mal-estar são as chaves da vida contemporânea. Vale tudo para ser infeliz. Uma época dominada pela infelicidade é uma época legal.

Para mim, pessoa que confia em quem passa a vida querendo ser infeliz, isso tudo parece ótimo.

O principio não utilitarista afirma que o homem foge do prazer e busca a dor (o mal-estar). Logo, devemos fazer uma sociedade que vise produzir em larga escala a infelicidade, a dor e o mal-estar.

E chegamos ao nosso mundo de gente que sonha em ficar com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar, e sem saúde.

A vida e a sociedade dominadas pela busca do mal-estar parecem tornar o homem mais homem.

 "Individualidade, não identidade, instabilidade." Slogan que salvaria o mundo para o qual seguimos a passos largos com esse não utilitarismo social em que vivemos, com um descontrole cada vez maior dos gestos, do pensamento e dos hábitos.

Toda a cultura não utilitarista está cheia de amor à felicidade individual e de ódio à comunidade. O pesadelo totalitário passou.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

metáfora

já desconfio há algum tempo que, na verdade, todas as figuras de linguagem são variações da metáfora, compreendendo metáfora no sentido de co-ordenação simbólica, ou um símbolo cuja função é ocupar, com o mesmo valor, o lugar de outro objeto (ou semantema). senão, vejamos: hipérbole: metáfora do exagero; eufemismo: metáfora da atenuação; aliteração: metáfora sonora; antítese: metáfora da oposição; onomatopeia: metáfora de imitação sonora; pleonasmo: metáfora da repetição, e por aí vamos. mas e a metonímia, adversária aparentemente feroz da metáfora, sua rival filosófica, já que parte da lógica, enquanto a metáfora seria só símbolo? ela que não fique se achando, porque, se bobear, é um tipo de metáfora também, já que sua lógica, me perdoem os linguistas, não é tão lógica assim.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

flecha

um dos títulos que cogitei para meu último livro, "o que os cegos estão sonhando", era "a flecha tardia", expressão que encontrei num poema de paul celan, talvez o único poeta que conseguiu, mais do que falar sobre a guerra, dizê-la. desisti porque soava solene e artificial para o propósito do livro. mas sempre que revejo "a flecha tardia" sei que ainda vou usá-la: pegá-la aqui, no futuro daquele tempo, ela que foi atirada às cegas como quem joga uma garrafa no mar; ela que não foi atirada mas que apareceu aqui, agora; ela cujo caminho carrega o século em si. todo remetente encontra, enfim, um destinatário; mesmo que não seja aquele que imaginou, nem no lugar, nem no tempo.

sábado, 1 de dezembro de 2012

raiva

o cara faz assim: não tem coragem de terminar um relacionamento; diz para si mesmo e para várias outras pessoas (secretamente) que é por compaixão pela outra pessoa, não quer magoá-lo(a), há filhos, tantas histórias. em função dessa pretensa generosidade, fica com pena de si mesmo, pois se sacrifica pelo outro(a). isso, é claro, faz com que ele fique com muita raiva do outro(a), por praticamente obrigá-lo a sacrificar-se por ele(ela). isso piora ainda mais o relacionamento, que acaba explodindo, claro que por culpa do outro(a), que não sabe nem reconhecer o esforço dele em permanecer e fazer tudo para ficar junto. o relacionamento acaba e o cara fica para sempre morrendo de pena de si mesmo, pois tentou de tudo, de tudo mesmo, mas não deu e o outro(a) ainda o culpa injustamente.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

facebook

um poema de sucesso que seja top no twitter, que dê para cobrar ingresso e que ao francês diga oui; ter mil fãs no facebook, ser parada no youtube, ganhar rivais só no muque fundar um aeroclube. mas o blog perde a métrica e não sabe separar versos e tem a questão estética e os conceitos diversos. melhor é deixar mais quieto e seguir na lida dura; ser um sucesso incompleto dessa vã arquitetura.

domingo, 25 de novembro de 2012

arte

um dos muitos milagres da arte - e aqui penso em milagre como maravilhamento mesmo; aquilo que se vê e que espanta - é que, quando nos sentimos tocados por uma obra, ela foi, sem dúvida alguma, feita especial e exclusivamente para você. sem deixar de ser universal - e isso conta ainda mais para o destinatário único - ela é apaixonadamente singular. e isso não quer dizer que ela tenha sido feita para qualquer um que olhar para ela. isso vale só para você. e vai-se para casa sendo dono absoluto de um monet, um matisse, um arp (que esse, sem dúvida, fez tudo só para mim e para ninguém mais).

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

fidel

o genial poeta chico alvim lembrava que, numa ocasião, ainda nos anos 60, encontrou-se acidentalmente, num elevador, com fidel castro e che guevara. enlouquecido com essas presenças, tentou se comunicar e diz que fidel foi muito simpático e caloroso, mas que che se manteve distante e desconfiado. clarinha, mulher de chico, ouve a história e diz: chico, esse encontro nunca aconteceu. você está sonhando. chico diz: é, clarinha, pode ser. o che é mesmo absurdo. mas deixa eu sonhar que encontrei o fidel, vai.

domingo, 18 de novembro de 2012

pronome

a confusão pronominal do português é complicada, mas, por vezes, pode ser literariamente interessante.por exemplo: a mãe perguntou à filha se ela gostava dela. essa frase é ambígua e é preciso reformulá-la para que se conheça quem é ela e quem é dela. mas, num certo sentido, essa ambiguidade é boa e a frase pode ganhar com essa indecisão. se fosse eu, manteria desse jeito mesmo, porque, afinal, essa mãe não está entendendo nada.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

dúvida

a certeza é uma doença relativamente comum. pode ocorrer em qualquer estação do ano e atinge pessoas de todas as idades, mas é mais grave quando aparece em pessoas com mais de quarenta anos. nesses casos, dificilmente se encontra a cura, embora haja alguns tratamentos prolongados e agressivos que surtem algum resultado. a melhor prevenção contra a certeza está numa dieta rigorosa, muito exercício e remédios profiláticos à base de dúvida, um antigo composto caseiro.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

mesmo

você me perguntou qual era o nome daquilo. eu disse que não sabia e não sei mesmo. fiquei tentando descobrir a palavra certa, o lugar preciso, a sensação exata, mas não pude. ficou esse buraco que parece impreenchível. mas ele não é, não. está preenchido com essa ausência e é o que isso tudo quer dizer.

sábado, 10 de novembro de 2012

rio

em tristeza tem um bairro chamado porto alegre. lá falam seis com vinte, para dizer o preço de uma coisa e não seis e vinte, como em são paulo. em paulo neves, tem um bairro chamado menino deus, que é no que eu fico pensando quando estou com ele, que me fala das coisas das nuvens e da escada de wittgenstein. wittgenstein, aliás, depois que usou a escada, jogou-a fora e disse para calar sobre aquilo que não se pode dizer. em porto alegre tem uma coisa que não se pode dizer e que são o rio, o rio e o rio.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

causa

você aí, que está lançando dois livros no próximo dia treze, a partir das dezenove e trinta, na amoreira, que fica na rua dos macunis, número quinhentos e dez, com leituras de trechos dos livros por várias pessoas que você admira: convença-se: o mundo continua o mesmo e tudo vai dar certo. são paulo não vai parar por sua causa.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

tuip

ah, como eu queria ser um ferreirinho-relógio. comeria gramíneas, faria ninhos em formato de xícara e, quando a fêmea se aproximasse eu cantaria, feito um relojoeiro: tuip, tuip. mas, maria, agora eu pensei: acho que não é esse o barulho que fazem os relojoeiros.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

sombra

em linha de sombra, joseph conrad diz que "o calor do oriente tropical descia por entre os galhos folhudos, envolvendo meu corpo coberto de roupas leves, agarrando-se ao meu rebelde descontentamento, como que para roubá-lo de sua liberdade". sim, como é livre o rebelde descontentamento.

domingo, 28 de outubro de 2012

pardal

aqueles dois filhotes de pardal, num canteiro lateral da avenida sumaré, não sei se estavam se beijando ou passando comida um para o outro.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

barraca

tenho lido muitos livros razoáveis. bem escritos, com boas histórias. alguns, inclusive, premiados. mas não consigo entender o porquê de tanta correção linguística, construtiva e temática. como partidária convicta da função ética que a novidade exerce na arte, no sentido de apresentar o outro aos outros, de mostrar o mesmo a partir de outros lugares, de terminar um livro de forma diferente do que se começou, não posso aceitar tanta razoabilidade. dá para chutar mais o pau da barraca?

sábado, 20 de outubro de 2012

organização

na gaveta inferior direita, estão os recibos de restaurantes frequentados em dois mil e onze; na gaveta inferior intermediária, estão os recibos de consultas médicas frequentadas em dois mil e onze; na gaveta inferior esquerda, estão os ingressos de cinema frequentados em dois mil e onze; na gaveta intermediária direita, estão os recibos de compras de supermercado feitas em dois mil e ooonze; na gaveta intermediária intermediária estão os lápis usados em dois mil cento e onze; na gaveta intermediária esquerda, estão os restaurantes dos canhotos frequentados em dois mil e onze; na gaveta superior direita, estão os remédios dos recibos tomados em dois mil e onze; na intermediária superior gaveta, os chaves dos gastos das portas estão em dois mil e onze; esquerda gaveta na superiora, os frascos dos buracos não sabe quando, mais de dois mil.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

yir

ir, pela língua, a lugares que não conhecemos. falar vaciniáceo, kwarmatwi, labaça-obtusa e gabarolas. ouvir línguas que não sabemos: dungidjau, yir yoront, apolista e krenjê. rimar éter com suéter e ridículo com tico-tico. ouvir só a prosódia das conversas. imitar as falas dos outros. repetir, repetir. dar nomes errados aos objetos e estabelecimentos: açougue, que palavra absurda. juntar palavras para formar novos substantivos: nariz-cadeira e pó-pé. aproximar significados pelos sons: chuva e luva, crocante e credo. não entender, nunca, o que significa ativo líquido.

domingo, 14 de outubro de 2012

teoria

o querer dela não tinha objeto. o que ela queria mesmo era sempre e só querer. então não tinha jeito de ela ficar satisfeita. porque, se acontecia o que ela dizia que queria, não dava mais para querer. daí era aquela lenga-lenga, aquele chororô danado e toda uma teoria para justificar por que aquilo que ela tinha dito que queria, não era bom nem verdadeiro o bastante. mas era sim. ela que não percebia. coitada.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

it

a hipótese pode ser estapafúrdia, mas é poética: a impossibilidade, em inglês, de criar orações sem sujeito e sem predicado, é que faz dos americanos e dos ingleses povos tão mais pragmáticos do que os falantes do português, por exemplo. afinal, com essa exigência, torna-se sempre necessário saber quem agiu, quem sofreu a ação, de onde se veio, para onde se vai. como deve ser difícil não poder dizer simplesmente: chove. por quê e para quê: "it rains?", uma espécie de "isto chove"? e a dor, então, de não poder dizer "eu sinto", "eu preciso", "eu quero", mas sempre "i feel it", "i need it", "i want it". por uma gramática dessubjetivizada e desobjetivizada, abaixo os its!

domingo, 7 de outubro de 2012

haddad

votei em haddad porque está em seu plano de governo: mudar o monocentrismo de são paulo para um policentrismo; criar um chamado "arco do futuro" que integra todas as subprefeituras; reduzir a excessiva pressão imobiliária e a excessiva verticalização construtiva e substituí-la por uma verticalização planejada e não especulativa; desestimular o uso do automóvel;ocupar os estacionamentos de forma qualificada;criar uma macroárea de reestruturação urbana, acompanhando as orlas ferroviárias e antigas áreas industriais; atuar para evitar despejos e reintegrações de posse e muitas, muitas outras coisas que estão em seu belo plano de governo. mas também porque vejo luz em seus olhos.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

oportunidade

oportunidade vem de ob portus veniem, ou chegando perto de um porto. a conotação negativa de oportunismo, imagino, teria então a ver com estar sempre tendendo para algum porto, no lugar de enfrentar as vicissitudes do mar. por outro lado, qual é o nome de alguém que sabe aproveitar bem as oportunidades, senão oportunista? oportunador? oportunante? acontece que aproveitar também é, por si mesma, uma palavra ambígua, já que vem de profité, tirar proveito, lucrar. lucrar com a aproximação de algum porto. oportunidade, talvez, seja mesmo sinônimo de comércio.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

passado

perfeito não significa nada mais do que percorrido, como se fosse o particípio passado de fazer, um tipo de "perfazido". se entendermos a palavra literalmente, portanto (e essa compreensão é sempre esclarecedora), para fazer algo perfeito é só fazê-lo inteiramente. completar o percurso de algo é a perfeição. a propósito, não é por outra razão que os tempos verbais do pretérito recebem o nome de perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito. trata-se de: uma ação no passado totalmente realizada, uma ação em processo de realização e uma ação realizada antes de outra, também no passado. mais-que-perfeito não é, assim, irrealizável. é só muito antes.

sábado, 29 de setembro de 2012

siso

siso é sinônimo idêntico de juízo. e não é à toa que às pessoas carrancudas, austeras, chamam também de sisudas. são, etimologicamente, pessoas ajuizadas. e o juízo é mesmo portador e credor da rabugice. não tem nada a ver com o conhecimento, a sabedoria, a inteligência. ao juízo, ao siso, prefiro a graça desajuizada.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

asa

você se esqueceu de colar a asa daquela xícara que quebrou já faz dois meses, e que está separada no peitoril da janela da cozinha.você não tem ideia, mas disso depende muito: a continuidade da procriação das baleias orca no sul de santa catarina, o relacionamento conjugal malparado do vizinho da esquerda, o sopro do apito do guarda que fica na francisco morato com a vital brasil e o café que nunca dá certo no escritório torres & torres, no centro de vitória. corra, pegue um tubo de cola e vá consertar aquela asa.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

tão

gosto do bonito, não do belo; do difícil, não do complicado; do simples, não do fácil; do verdadeiro, não do real; da mentira, não do falso; do longe, não do distante; do perto, não do próximo; da procura, não da busca; da paciência, não da espera; de estar sozinha, não da solidão; da tolice, não da burrice; da inteligência, não da esperteza. mas nada disso é tão categórico assim.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

t3

hérnia vem de hirnia, que significa ruptura. mas, antes disso, a palavra vem de yarn, que é fio e, por derivação, entranha. derivando ainda mais, o corte no fio virou ruptura na entranha, ou as hérnias atuais: de disco, na lombar, no esôfago, inguinal. em inglês, to spin a yarn, ou girar o fio, é metáfora também para contar uma história, porque essa era certamente uma das coisas que os tecelães faziam enquanto manuseavam o tear. posso pensar, portanto, que uma hérnia é um tipo de pausa narrativa, bloqueio criativo, travação geral. faz uma semana que essa maldita me acompanha na altura das misteriosas t3 e t4.

sábado, 15 de setembro de 2012

real

atenção, atenção, você, que está perdido, angustiado, tenho a resposta para uma de suas perguntas mais difíceis! eu sei o que é o real! o real é: o ardor da pimenta, o pelo do gato,o frescor do vento, a raiva do vizinho, a inveja da moça mais bonita, a paranoia, as falsas impressões, as opiniões contraditórias, o desejo de ajudar alguém desconhecido, o desejo de esgoelar alguém conhecido, os elefantes cor de laranja, o buraco negro, o homem que cospe coelhos no conto do cortázar, o pipoqueiro que mora numa mansão aqui do lado da minha casa e o outro que pescou um peixe de trezentos quilos num riachinho de um bairro da periferia.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

nariz

ele tinha um nariz enorme. daqueles tão tipicamente judeus, que justificava todas as piadas sobre narizes. por cima do lençol que o cobria bem rente ao corpo, eu acompanhei o desenho do seu nariz, cujo perfil se delineava com perfeição. enquanto eu mantiver na memória esse contorno, enquanto eu sentir nos meus dedos o relevo daquele nariz, ele vai continuar vivo comigo. não é muito, mas é muito mesmo assim.

domingo, 9 de setembro de 2012

casamento

ahã,ela disse e eles foram para o lugar onde ainda se fala ngarrindjeri, uma língua aborígine do baixo rio murray, onde se brinca com os leões marinhos e onde existe um poema de amor que diz assim: flutuar, flutuar, flutuar; peneirar, peneirar, peneirar; atravessar, atravessar, atravessar; cabeça, cabeça, cabeça e é o jeito que os ngarrindjeri têm de pedir em casamento.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

chiça

tenho tamanho desprezo por essa pessoa, que me recuso até a dizer seu nome. acontece que, ao recusar-me a isso, dou a ele uma importância que ele não tem. mas, se para não lhe dar essa importância, digo o nome, sinto minha boca se sujar. o nome cola na língua, gruda na gengiva. preciso encontrar um apelido à altura de sua pequenez, sem que isso dê a impressão de que ele é desprezivelmente importante para mim, ou importantemente desprezível. seu apelido, portanto, a partir de hoje, será "reles". e quando eu ouvi-lo falando ou tiver que ler o que ele escreve, direi: vá à fava! vá bugiar! vá à tabua! uxte! chiça! fu! cebolório! irra! passa fora, reles!

sábado, 1 de setembro de 2012

ausência

ideia para resolver uma ausência de ideias para escrever: olhe para sua esquerda. qual é a primeira coisa que você vê? eu vejo um interruptor. vá ao google e pesquise: interruptor. eu fui e encontrei um site com o título: "onze modelos de interruptores com diferentes funções". uma frase diz assim: "é o futuro dos interruptores na sua casa". pensei como é triste que os interruptores tenham um futuro e que ele venha parar na minha casa. também pensei que interruptor é aquilo que interrompe a passagem de energia. então pronto. já tenho o começo do meu conto: "um pequeno fluxo de energia vinha passando em seu movimento aleatório habitual, quando foi subitamente interrompido e redirecionado para um bulbo metálico. era o futuro e o fluxo se entristeceu."

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

arroz

é melhor: um abraço do que o amor; um sim do que a verdade; um papagaio do que a natureza; um olhar do que a honestidade; uma panela de arroz do que a solidariedade.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

ar

na idade média, dividiam-se os humanos de acordo com o líquido que predominava em seu organismo. eram o humor vermelho, o amarelo, o negro e o branco. para cada humor, um tipo de personalidade: a colérica, a melancólica, a mórbida e a apática. já meu pai, em tudo mais prático, facilitou as coisas: quando não gostava de alguém por considerá-lo apático, dizia que a pessoa era luft inspektor, ou inspetor de ar.

sábado, 25 de agosto de 2012

amarelo

no fundo, no fundo, mas bem no fundo mesmo, não há nada. a grande verdade de uma alma, o segredo único de uma obre de arte não existem. superfície e fundo se misturam permanentemente, em processos de sobredeterminação contínua. uma mania, coçar o dedo, por exemplo, não revela ansiedade ou o que quer que seja. coçar o dedo está relacionado a algum traço da psique que nunca poderá ser isolado. da mesma forma, a psique também se deixa moldar pela coceira do dedo, que passa a transformá-la. o grande segredo, mas o misterioso e único segredo do amarelo de van gogh é ele ser amarelo. além disso, mais nada.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

halteres

na rádio ouço a propaganda de uma escola "forte". uma criança diz que é forte em matemática, outra em desenho e outra em português. ao final, o texto diz que a escola é forte em ensinar. por que chegou-se a essa ideia nefasta de ensino forte? por que associar conteúdo a força, já que escola forte é aquela que "puxa" no conteúdo? por que não pensar em escolas que ensinam os alunos também a serem fracos quando necessário? onde a ideia de que conteúdo não é halteres?

sábado, 18 de agosto de 2012

espera

eu sou a espera. estou: no botão da sua camisa; nas cerdas da escova de dentes; na borra do café; na composição química do remédio; no pé de ameixa; no bico do papagaio; no poliestileno; na bola de ping-pong; no seu pé.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

bugiganga

as palavras que designam coisas sem importância são bem mais interessantes do que as palavras que designam coisas sérias e solenes. senão, comparem-se: bugiganga, quinquilharia, cacareco, bagatela, inânias, és-não-és, questiúncula e rebotalho com, por exemplo, ponderação, monta, notabilidade, substância, ênfase, relevo, gravidade e urgência. como são pobres as palavras importantes.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

agá

por algum mistério etimológico, em português a diferença entre o estado de repouso fisiológico - o sono - e a produção fabular do inconsciente - o sonho - é somente de uma letra, o agá. que lindo que seja justamente essa letra, muda mas determinante, símbolo gráfico da aspiração - apenas um sopro - que marque a diferença também mínima, mas essencial, entre o sono e o sonho. e que bom também que acasos históricos, culturais, linguísticos tenham abençoado o português com essa sutileza.

sábado, 11 de agosto de 2012

isso

rema, rema, rema, meu barquinho/ gentilmente pela corrente/ alegremente, alegremente, alegremente, alegremente/ a vida é só um sonho. pronto, é isso.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

ciúmes

jealous vem de zeal, que significa a não tolerância à infidelidade, no sentido religioso. em espanhol, jealous derivou em celoso e, em português, zeloso. o ciumento é, na verdade, um zelador, possessivo (outro significado original de jealous), que toma conta de seu território. a palavra gelosia, ou persiana, também está relacionada aos ciúmes, porque era atrás delas que se guardavam as mulheres das vistas alheias. celoso derivou em cilume, que acabou no nosso ciúme que, aliás,além de considerar um dos sentimentos mais nocivos da psique,não sei quando é ciúme e quando é ciúmes.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

saída

a grande glória de dizer solenemente que a vida não tem saída. oh! que coragem! isso, na verdade, é nada mais do que um escudo poderoso para justificar sofisticadamente o egoísmo, tornando-o algo maduro. vamos, aproveite seu egoísmo, porque eu afirmo do alto de meus diplomas que a vida não tem sentido. pois olhe aqui: que a vida não tem sentido nem saída qualquer monge budista, qualquer padre de paróquia sabe. mas é isso justamente o que deveria explicar nossa louca oscilação entre buscar o nosso bem e buscar o bem comum, que, aliás, não são excludentes. quem sabe que as coisas não têm mesmo sentido e ainda assim luta por algum ideal (mesmo que tosco e tonto), é muito mais genuíno, efetivo e capaz de realmente agir do que os irônicos desdenhadores do bem. o que eles fazem é auto-ajuda para quem diz que não gosta de auto-ajuda.

sábado, 4 de agosto de 2012

ludwig

a viúva de schiller foi visitar um conservatório em colonne. o professor disse a ela que havia lá um aluno completamente obcecado pelo poema ode à alegria, de seu falecido marido. a esposa foi conhecer o jovem ludwig que, emocionado, lhe prometeu que escreveria algo grandioso em homenagem àquele poema. imaginar a iminência da nona sinfonia, a quase existência do que já existe e que dá sentido à vida, é da ordem do maravilhoso.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

fronteira

à noite, na imensidão de uma vigília súbita, sobrevém uma angústia sem nome nem substância. ela se confunde com a noite, com as manchas da luz, com o sonho recente que já está se desfazendo. ela é a moradora adormecida da minha alegria; dela minha alegria se abastece. enquanto estou bem acordada, a angústia dorme. quando durmo, muitas vezes ela acorda e me sustenta. mas na fronteira inadvertida entre dormir e acordar, ela se avoluma. aperto o travesseiro.

terça-feira, 31 de julho de 2012

letra (post hesitante)

é claro que é absurdo idealizar o não letramento do sertanejo mais velho e relacionar diretamente a isso sua sabedoria sobre a natureza e a existência. mas algo que percebo é que, com a aquisição do letramento, adquire-se também uma espécie de figurativização do real que diminui a capacidade de integração orgânica entre a imaginação, a inteligência e os sentidos. o mundo passa a ganhar contornos letrados, as coisas passam a ganhar significados mais claros e definidos. tudo recebe limites. é o destino da letra e do pensamento representativo. acho que os responsáveis pelo letramento das crianças deveriam, cada vez mais, levar em conta possibilidades de integrar o pensamento mágico - sem limites, não representativo, alógico - ao ensino do alfabeto e dos significados das palavras. tenho medo de que, num mundo de correspondência unívoca entre significantes e significados, percam-se os sacis, as uiaras e as simpatias sem pé nem cabeça.

domingo, 29 de julho de 2012

morada

por que, em inglês, viver e morar são ambos traduzidos por "to live"? será que a tradição anglo-germânica protestante os fez acreditar que não é possível viver sem morar? como é opressora essa fúria aplicativa da língua. deixa, deixa, deixa as pessoas viverem sem morar um pouquinho.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

novidade

enquanto herdeiros e pseudo-herdeiros de marshall mcluhan se debatem atrás do que fazer para lidar com a quantidade de novidades que surgem a cada minuto, o pretinho, aqui de morro da garça, resolveu melhor: o jornal pode ser de uma semana, até de um mês atrás. se eu não li, ainda não aconteceu. uma coisa é sempre nova enquanto a gente não lê. só depois que a gente lê é que ela fica velha.

domingo, 22 de julho de 2012

dezessete

o antropólogo islandês eiour smari guojohnsen descobriu, após longas e profundas pesquisas, que, numa ilha a noroeste da islândia, de nome asgrims, os habitantes não estabelecem as divisões da natureza e do mundo a partir de pares, como fazem todos os povos da terra, mas a partir de grupos de dezessete. assim, se alguém deseja tomar um banho, há dezessete e não duas ou três gradações, como frio, morno e quente. as temperaturas variam em: extremamente gélido, altamente gélido, gélido, extremamente frio, muito frio, frio, na passagem de frio para morno, quase morno, morno, na passagem de frio para quente, quente, muito quente, extremamente quente, pelando, altamente pelando, extremamente pelando e em estado de fogo. da mesma forma, estabelecem-se graus para o dia e a noite, a confiabilidade de uma pessoa, a madureza de uma fruta, a qualidade de um alimento. eiour relata que a comunicação, em função dessa divisão, é tão lenta e trabalhosa, que os habitantes de asgrims preferem permanecer calados a maior parte do tempo. parece que essa é uma das razões por que eles parecem sempre tão satisfeitos.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

regência

de vez em quando, mudar algumas regências verbais (aliás, a própria palavra regência deveria ser mudada, já que o verbo não é o rei das palavras): libertar-se em e não libertar-se de; viajar algo e não viajar em ou por algo; apaixonar alguém e não apaixonar-se por alguém; sonhar algo e não sonhar com algo; você me gosta, querendo dizer que eu gosto de você, como no francês ou no espanhol (tu me plais, esto me gusta); você me falta, querendo dizer que eu sinto sua falta, como em francês (tu me manque) e, finalmente, e sem vergonha, deslocar alguns pronomes repressores: nada de "eu o amo". já que é para dizer, digamos logo: "eu amo ele".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

trusva

como ela exglitasse tuito, astroveu não ploncar. não persocou. rasminhou, inblorteu, casblintiu e ploste. ascontante prislo, chuntrou as praisgas e foi cloca. isso sempre acontece, não plosco tormê.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

mania

os obsessivos que me perdoem, mas não tenho paciência para manias. não gosto quando se dá importância a fazer as malas assim ou assado, à forma como se dobra a calça, ao jeito de se pendurar a blusa, ao lugar onde fica o vaso. talvez seja uma interpretação rasteira, mas me parece que as manias são enxertos medrosos da morte dentro da vida; espécies de congelamentos, tentativas de fixar a dinâmica da vida, que é sempre imprevisível e desorganizada.

sábado, 14 de julho de 2012

eu

eu mandou ver se eu estava lá na esquina. eu foi e não o encontrou. quis voltar. mas eu não suporta mais eu, que interfere em tudo o que eu faz; eu opina, quer e, o que é pior, acha. eu acha sem parar. quando alguém diz qualquer coisa sobre si, eu quer dizer também. e eu simplesmente não aguenta mais isso. por favor, eu, vá ver se eu está lá na esquina e se eu não estiver, vá para outra freguesia, esqueça que eu existe. deixa eu em paz.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

entretenimento

perguntaram a jonathan franzen se a função da literatura é entreter. com ressalvas, ele acabou dizendo que sim. costumo atribuir a esta suposta "função" da literatura o papel de algo menor; digamos que inevitável. digo que sempre prefiro o perturbador ao divertido. mas se entreter, divertir e deleitar forem entendidos etimologicamente, como "manter entre", "desviar-se" e "obter delícia", então tudo muda. a literatura é mesmo o que nos mantém entre dois lugares: não somente no ficcional (o que seria o entretenimento menor),mas também no real. a ficção nos lança de volta ao real de maneira nova, esquisita, outra. é também o que nos desvia do conhecido e que, com isso, com essa localização fronteiriça e esse estranhamento, nos delicia.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

violão

logo que conheci o joão, me apaixonei, entre outras coisas, pelo fato de ele tocar violão tão bem. no mesmo ano lançaram, na rádio eldorado, um concurso para ganhar um violão igual ao que o gilberto gil tocava na época. mandei umas cinquenta cartinhas. como era proibido um mesmo nome concorrer mais de uma vez, pedi que todos os meus conhecidos enviassem. e um dia, no rádio, escutei: o vencedor do concurso "ganhe o violão de gilberto gil" é noemi jaffe. exultei por ganhar o violão e por ouvir meu nome na voz daquele locutor. o ganhador teria direito ao autógrafo de gil no próprio violão, algo que já nos constrangia só em pensamento. recusamos o autógrafo. o violão também não era lá essas coisas, mas como foi bom.

terça-feira, 3 de julho de 2012

pingo

o pingo está bem velhinho, surdo, meio cego, fraco das pernas e um pouco esclerosado. fica andando sem parar, pra lá e pra cá, desgovernado e carente. quando saio para a rua, fico pensando nele dentro de sua casinha. provavelmente, ele não está pensando em nada e nem sofrendo. mas ele está lá e tem um ser, algum tipo de individualidade só sua. o que o constitui? como é o seu ser velho? como estar junto de sua solidão velha e atendê-lo nas necessidades que ele mal sabe expressar, além de olhar e andar? a velhice explode como a condição de um eu vazio, como que pedindo: seja por mim. sua velhice me faz pensar na minha.

sábado, 30 de junho de 2012

sucesso

algo que pode simplificar muito a histeria do sucesso é saber que a palavra sucesso, assim como evento e ocorrência, é sinônimo de acontecimento. o bom sucesso, portanto, é não mais (e isso não é pouco) do que deixar acontecer.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

conjunção

em literatura, não suporto conjunções. como elas exercem descaradamente a função de encadear pensamentos lógicos, elas sempre acabam se tornando muletas, atalhos para facilitar um caminho que, dito de outra forma, seria mais belo. por exemplo: "conforme o cartaz, a casa estava à venda". a palavra "conforme" introduz o mundo dos formulários na narrativa e corta o caminho concreto, aludindo a uma conjectura. conforme, na verdade, não é nada. não é muito melhor, no lugar dessa frase terrível, dizer algo como: "eu queria comprar aquele sobrado"? e no lugar de "embora cansada, ela foi à festa", não é melhor dizer "ela foi a festa morta de cansaço"? afinal, o que é embora?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

diálogo

num caderno de anotações antigas, encontrei a transcrição de um diálogo de augusto monterroso, autor de quem gosto muito: -do you? -very. é estranho,mas estava lendo em inglês um livro de um autor espanhol. este diálogo fabuloso me parece intraduzível para o espanhol ou para o português e quero levá-lo comigo no bolso e usá-lo sempre. "do you" é uma espécie de "você faz?", "você é?", "você quer?", "você tem?" e "very" - que significa muito e verdadeiramente - é sem dúvida a melhor resposta para todas essas perguntas.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

vírgula

ouço uma palavra chegando. ela não bate à porta, não avisa a que veio, nem por onde andou. ela aparece, senta-se e me olha. ela fala: sou a vírgula. eu pergunto: o que você quer dizer? ela diz que não quer dizer nada. ela só quer água e pão com manteiga, porque andou muito, está cansada. eu a recebo, deixo-a dormir e a coloco ao lado da palavra urso, que tinha chegado mais cedo. elas ficam bem assim, uma ao lado da outra. mais tarde, quando elas estiverem acordadas e mais bem dispostas, vou convidá-las para ver televisão.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

tradução

no limite, por mais que se possa transmitir o mesmo significado em várias línguas diferentes, todas as palavras são intraduzíveis. daí a melancolia inevitável do tradutor, cujo trabalho é nada menos que o impossível. uma palavra como nascer, por exemplo, como traduzi-la, sem perturbação, para i was born? do "ser carregado" passivamente para o verbo plenamente ativo e sonoro de "nascer"? e tchau para au revoir, cala a boca para shut up, ser e estar para to be e gente para people? mas sem dúvida a melancolia do tradutor deve se transformar em depressão profunda quando ele é forçado, sem direito a protesto, a traduzir cocorocó por cock-a-doodle-do.

domingo, 17 de junho de 2012

concretude

todas as palavras que hoje são abstratas, um dia tiveram origem concreta. teoria é assistir a torneios esportivos; especulação é observação das estrelas; hermenêutica é a arte de entregar mensagens; explicar é desfazer dobras; ideia vem de enxergar; razão é divisão; angústia é passagem estreita e, como essas, milhares de outras. é por isso que sempre digo que a poesia é a linguagem mais concreta que existe e não, como muitos pensam, a mais abstrata. porque a poesia é a linguagem que acede verticalmente à natureza das palavras e, por isso, ler poesia é como pegar, cheirar, ver e ouvir as coisas em seu estado de maior imanência.

terça-feira, 12 de junho de 2012

esquecimento

quanto mais vivo, escrevo, leio e pesquiso, mais tenho a sensação de que aquilo que se esquece é mais importante, para o indivíduo e para a coletividade, do que aquilo que se lembra. quando o que se esqueceu ressurge, por esforço mnemônico, por documentos buscados ou casualmente surgidos, por atos falhos ou por acaso simplesmente, revela-se mais sobre o presente do que tudo aquilo que dizemos, ou que nos esforçamos por lembrar.a psicanálise já tinha dito isso e explica o fenômeno com termos como recalque e repressão. mas, para além (ou aquém) disso, no plano linguístico e existencial, sinto (mais do que penso) que a memória é um depositário de esquecimentos, mais do que de lembranças. e que é no que se esquece que estão os cadinhos estalactíticos da poesia.

sábado, 9 de junho de 2012

gaveta

giacometti disse que poderia ficar eternamente pintando uma única cadeira, porque qualquer objeto é infinito e irretratável. o mesmo vale para a literatura: é possível escrever sobre uma maçaneta, um pelo, uma gaveta, infindavelmente. e o que é pior (ou melhor): nunca é possível encontrar a palavra certa para se dizer qualquer coisa, nem mesmo gaveta para uma gaveta. cada palavra que se usa pode ser sempre substituída por outra melhor.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

choro

não sei se é a aproximação lenta, mas certa, da velhice; se é o outono; se é a ideia de que os filhos inevitavelmente partem; se é a mesa posta, a casa arrumada; se são a segurança e insegurança acumuladas; se é a torta de tâmaras que comi faz três meses, mas tenho chorado como o diabo, por qualquer coisa que nem lembra alguma emoção. ontem, só de ver o luis tatit caminhando pela rua, carregando sua mala de professor, comecei a chorar. mas, pensando bem, existe algo mais emocionante do que uma pessoa tão linda, com a música brasileira dentro da mala, caminhando na rua numa noite de chuva?

terça-feira, 5 de junho de 2012

erros

erros de português que adoro cometer: colocar alguma coisa "de assim"; isso é só "entre eu e você"; vou assistir "o" jogo; quero ir "no" banheiro; prefiro isso "do que" aquilo; o peixe tem "espinho" e o melhor de todos, que deveria ser considerado correto, em nome do amor: "fica comigo".

sábado, 2 de junho de 2012

amor

você não se parece nem um pouco com um luar branco sob uma nuvem acinzentada, ou um jaguar correndo na selva, um tronco perdido no monte, uma onda se aproximando da praia, uma folha em branco esperando ser preenchida, um perfume de malva antigo, uma brisa leve que entra pela janela, uma chama pequena que sobrou,os olhos espertos de um gato. você não se parece mesmo com nada disso. você parece mais um sapato.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

maturidade

tive medo de olhar. achei que se demorasse um pouco, quem sabe a coisa ganhasse o aspecto que eu queria. enquanto não olhasse, ela poderia ser boa ou ruim. depois, ela seria definitivamente o que era. achei que, dependendo do meu humor, ela se converteria necessariamente em positiva, se é que já não o fosse. entrementes, pensei que isso de nada adiantaria. ela já era o que seria, mesmo antes de eu olhá-la. então decidi olhar, com decisão e maturidade. logo que a vi de relance, entretanto, já entendi que era ruim. olhei até o final e era pior ainda. estremeci um pouco. virei o rosto e quis esquecer. não pude e sei que vou lembrar por algum tempo, com um peso ainda maior do que aquele que a coisa tinha. agora, vou convertê-la em mais do que ela é. ela, que é só o que é, para mim sempre será menos ou mais.

terça-feira, 29 de maio de 2012

ópera

se eu já conheci uma vendedora de cosméticos búlgara em dallas e um cantor de ópera romeno, gay e gago, em varsóvia, fico pensando: será que existe um pipoqueiro jamaicano na turquia? uma advogada criminalista peruana em uganda? um percussionista manco e coreano na austrália?

domingo, 27 de maio de 2012

coisas

quando nada está acontecendo, a célia, a elizabete, o elias, a maria josé, a rosevane, a geni, a sebastiana, a alzenir, a santa, a maria neide, a juciara,a zenilda, o joel, a maria das neves, a demétria, a salete, a quitéria, a elenilza, o alessandro e a luciana, alunos e professora do supletivo do colégio santa cruz, que estão lendo meu livro, me deixaram muito feliz e agradecida. obrigada por me ensinarem tantas coisas.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

presente

não existe tempo verbal mais bonito do que o raro particípio presente, que conjuga o passado, representado pelo particípio, ao presente em movimento. palavras como poente, nascente, lente, movente, paciente, doente designam o processo mesmo, enquanto acontece, mas já antevêem o final; aquilo logo será passado. por essa mesma razão, porque o processo em breve acabará, elas são também confundidas com adjetivos. como se indicassem estados e não processos. como se o processo se escondesse lá dentro do verbo imperceptível.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

raiz

a assistente do meu cabeleireiro disse: o que é bom para a raiz não é bom para os fios; o que é bom para os fios não é bom para a raiz. não sei se é verdade, mas deve ser e, de qualquer maneira, se não for válido para os cabelos, para a vida serve muito bem.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

metáfora

método invertido de criação de metáforas: escolha um substantivo no dicionário. por exemplo: terno. em seguida, escolha um adjetivo, sempre aleatoriamente. por exemplo:tácito. você obteve então terno tácito. em seguida, descubra a que esta metáfora se aplica. por exemplo: a casamento. aí está. uma ótima metáfora para um velho assunto.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

purgatório

no verso trinta e sete do canto três do purgatório, na divina comédia, virgílio ralha com dante, que se inquieta por só enxergar, no caminho que trilham, uma única sombra e não duas: ó gente humana, que te baste o quia! quia significa aquilo que é. com isso, virgílio recomenda a dante que não queira conhecer as causas das coisas, já que isso é matéria de deus, mas que se contente em conhecer as coisas como são. talvez nossa necessidade, tão demasiadamente humana, de querer conhecer as causas das coisas e nossa dificuldade em aceitar o quia seja, ela também, mera ilusão e mesmo a causa que pensamos descobrir não passe de mera aparência. ó gente humana, se nos bastasse o quia!

segunda-feira, 14 de maio de 2012

liquidificador

fui socialista na adolescência, mantive atividades sempre coerentes com uma ideologia do máximo de justiça social possível, nunca fui entusiasta do consumismo e não sou adepta de quase nenhum luxo ou da cultura dos supérfluos. dito isso, preciso confessar, sem medo, culpa ou falsos pruridos: eu amo meu novo liquidificador.

sábado, 12 de maio de 2012

meta-post 2

o último post que escrevi, intitulado nada, foi, de todos aqueles deste blog, o menos visitado de todos os de sua história. apenas cinco visitações. me pergunto por que. inventei dois personagens lindos: o absurdo e o tartamudo. o tartamudo fala baixo e o absurdo não ouve. será que tartamudeei demais? serão que todos estão absurdos a esse meu nada?

quinta-feira, 10 de maio de 2012

nada

engasgando e se esforçando por pronunciar minimamente algumas palavras que fossem, tartamudo tentou fazer-se escutar. mas absurdo não ouviu nada.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

pulso

não se deve aceitar um falso cognato impunemente, como se fosse uma mera coincidência. sempre me intrigou por que push, em inglês, é empurrar e em português é trazer para junto de si, ou seja, o contrário, embora a palavra seja a mesma. ambas vem de pulsare, do latim, que é só movimento. acontece que os anglo-saxões entenderam movimento como mandar para a frente e os latinos como trazer para perto. como se vê, não há falso cognato, mas sim duas interpretações diferentes do mundo.

sábado, 5 de maio de 2012

si

mais do que a vida, dinâmica, a morte é que é a coisa em si, fixa. ir atrás da essência das coisas seria como ir atrás da morte que elas contêm. melhor não ir atrás, mas permanecer na superfície instável das coisas mutantes. porque mesmo a índole, a alma,o espírito, se existirem, também se transformam quando em contato com o ar.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012

carioca

o rio de janeiro concorda com a vida: as pedras, os morros, o mar, o calçamento, o ritmo da marcha do carioca acompanham o andamento do corpo e da natureza. parece que lá as pessoas não andam, mas transladam-se. só a palavra carioca já se distende no tempo, tão diferente de paulista, que é nominalmente associado a são paulo. carioca. queria ser carioca por um dia, rodar em torno do sol e depois voltar para o rio tietê, onde os deslocamentos são maquínicos, artificiais.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

borracha

ele pediu para eu olhar a água. podia ser rio, mar e até água da torneira. beber água, pensar em água. então hoje sonhei que atravessava uma ponte sobre um rio e me lembrei que precisava olhar para a água. olhando para ela senti, no sonho, minha alma balançar e achei bom. pensei que era disso mesmo que eu precisava. como se precisasse de uma borracha que fosse apagando o contorno do desenho que vou traçando. não totalmente, só uns pedaços.

terça-feira, 24 de abril de 2012

palavrão

puta merda é muito diferente de puta que o pariu, de merda, de bosta, de é foda e de vá tomar no cu.e é espantoso como o falante usa cada uma dessas expressões com propriedade, agudeza, discernimento e intensidade, dependendo da circunstância. puta merda é geralmente usado quando algo resulta diferente do previsto e negativamente. puta que o pariu usa-se mais para se referir a alguém que tenha frustrado a expectativa do sujeito. já merda é um puta merda atenuado e bosta está praticamente no mesmo registro de desagradável ou chato. é foda é insubstituível em sua especificidade e se aplica com justeza a situações irremediáveis, provocando invariavelmente empatia e solidariedade por parte do receptor. vá tomar no cu está na mesma categoria de impossibilidade de substituição, pois não há no mundo xingamento mais prazeroso para quem o profere.

domingo, 22 de abril de 2012

beiral

eles se mexem, mas ficam mais parados.são engraçados, mas por pouco tempo. brincam, mas logo desistem. saem e voltam, saem e voltam. comem sentados, andam em pé e deitam-se para dormir. não entram dentro dos armários nem espiam no beiral das janelas. afagam-se com comedimento. não caçam, mas alimentam-se de caça. seus movimentos são duros e eles são barulhentos. gostam e, como que do nada, desgostam. não se lambem como nós, mas se molham para limpar-se. cospem. emitem sons de numerosas variações, ritmos, volumes e extensões: poucos são inteligíveis, embora eles pareçam entender-se. são muito instáveis: repetem e variam com frequências imprevisíveis.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

fusão

embora goste muito das narrativas fluentes, também sempre me senti atraída por aquela que os críticos chamam de literatura difícil - obscura, cifrada, experimental. octavio paz, no livro sobre marcel duchamp, o castelo da pureza, explica justamente que a arte fundida à vida - que todos sempre pensamos tratar-se da indistinção entre a biografia do artista e sua criação - pode também ser a arte difícil, porque é ela que obriga o leitor e o espectador a converter-se em um artista ou um poeta. o ciframento linguístico, contanto que carregado de intencionalidade, faz com que o leitor pare, demore, estude e reconstrua a linguagem e o conteúdo do texto. a arte, assim, necessariamente se funde à vida do leitor e não somente à do artista.

terça-feira, 17 de abril de 2012

sun yi



sun yi chi, a quarta soldada da primeira fila, contando da esquerda para a direita, acordou cansada. abotoou mecanicamente seu uniforme, engraxou os sapatos (que estão apertados por causa de um calo insistente), tomou o mingau com as colegas e saiu para o desfile. nesse instante exato, ela está pensando em seu pai, chon ho, que ontem, segundo lhe contaram, teve um mal-estar. ela também pensa nas montanhas, nas galinhas e na plantação de lavanda que ela deixou em pyoktong, a trezentos quilômetros de pyongyang, onde ela está agora.

sábado, 14 de abril de 2012

muito

por que será que a ideia de "muito", em português, pode ser expressa pelo advérbio "bem", como em "bem cansado" ou, o que é mais estranho "bem mal"? de onde vem a associação entre as noções de "muito" e de "bondade"? de maneira semelhante, em inglês, o advérbio "very" está relacionado à "vraie", que é verdade. deve ser por causa dos universais platônicos: o bem, o belo e a verdade. aproximar-se deles, ou que seja ao menos pronunciá-los, já dá a ideia de muito.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

segurança

teoria estapafúrdia com um pouco de lógica: se todos andarem com as janelas do carro abertas e se todas as casas tiverem muros baixos, ou melhor, muro nenhum, os ladrões pensarão que ninguém os teme porque, provavelmente, nada tem a perder. assim, a melhor medida de segurança é abolir por completo as medidas de segurança.

domingo, 8 de abril de 2012

poesia

sempre adorei o poema de vinicius: "o mundo é esquisito: tem mosquito", porque achava que ele sintetiza todo o estranhamento que sinto diante do que o mundo tem de espantoso e de incômodo, além de falar também sobre o efeito de condensação da própria poesia. mas quando uma pessoa querida morre subitamente, jovem, na hora do lançamento do livro do marido, que dedicou seu livro maravilhoso de poemas justamente a ela, aí não acho mais esse poema bonito. o mundo é muito mais esquisito, estranho, chato e ruim do que os mosquitos e a poesia é muito menos do que sua condensação. a poesia não é nada e o mundo vira uma droga.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

sulco

foi com um espanto grave que li, nesta semana, que o hábito forma sulcos no cérebro e que, quando os estímulos nervosos atravessam os caminhos sulcados, caem inevitavelmente nessas depressões encefálicas, obrigando-nos a repetir nossos gestos e reações. decreto que a função dos poetas é, desde sempre e para sempre, pular, desviar-se, preencher e criar outros sulcos no cérebro, mais rasos, mais numerosos, mais enganosos.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

borges

outro dia soube que jorge luis borges, em sua primeira visita ao brasil, ainda não tão conhecido aqui e cansado de ir a tantos jantares, onde não podia falar em profundidade sobre assunto nenhum, perguntou a um amigo seu se havia algum lugar onde poderia dar uma palestra. o amigo respondeu que sim, que ele mesmo dava aulas no supletivo santa inês. no dia seguinte borges deu uma aula no supletivo santa inês, para cerca de vinte alunos. perto do final, um deles perguntou o que era coragem, ao que borges respondeu: ah, isso é assunto para uma outra aula. e voltou no dia seguinte.
(história contada por jorge sallum)

sexta-feira, 30 de março de 2012

objeto

é preciso que um extrato da ideia de verdade não seja relativo. não se pode relativizar tudo, sob pena de que, assim, nada tenha substância. e o aspecto absoluto da verdade está sobretudo na coincidência entre sujeito e objeto. se estou, sem saber como estou, por que estou, nem mesmo se estou, e mesmo assim estou completamente, então estou verdadeiramente.

segunda-feira, 26 de março de 2012

dois

penso que talvez os pequenos poderes sejam tão nefastos quanto os grandes, ou quem sabe até mais. o dono de um pequeno poder, como um secretário de repartição, um funcionário de baixo escalão ou mesmo um escritor, é capaz de interpor dificuldades às práticas mais simples e descompromissadas, para, entre outras coisas, vingar-se de seu poder ser tão pequeno. um atendente de uma grande rede de drogarias pode, por exemplo, recusar uma receita, porque está faltando, no ano de dois mil e doze, uma perninha no número dois.

sexta-feira, 23 de março de 2012

estrela

thor é filho de odin, o deus supremo de asgard, e de jord, a deusa de midgar. ele dispara relâmpagos com seu poderoso martelo mjolnir. thor não leu a hora da estrela, de clarice lispector, porque ele só gosta de disparar relâmpagos com seu poderoso mjolnir. wanderson é filho de ana e josé. ele não tem um martelo mjolnir, não consegue disparar relâmpagos e também não leu a hora da estrela.

quarta-feira, 21 de março de 2012

nicholas

encontro o nicholas por acaso tantas vezes por ano, que nós sempre combinamos de nos ver no próximo acaso, que sabemos ser iminente. ontem nos encontramos no mesmo vagão do metrô, quando os dois íamos para as respectivas reuniões e, para espanto até dos deuses, também na volta. quando a beleza em si mesma (aquela de platão) tropeça sem querer numa nuvem e deixa escapar um suspiro, aqui, no mundo sensível, ocorrem os acasos recorrentes e, nesse momento, somos como espectadores, sujeitos e objetos de um tipo de brincadeira do belo.

segunda-feira, 19 de março de 2012

ela

duas atitudes completamente distintas diante da vida se revelam nas respostas "sou eu" ou "é ela", à pergunta "fulana está?", dita ao telefone. não compreendo muito bem o que significa o eu que responde "é ela". é alguém que trata a si mesmo como o outro do interlocutor que o procura ao aparelho. como se, neste momento, o eu abandonasse sua casa e se tornasse o receptor impessoal de alguém que o busca. logo depois dessa resposta vicária, entretanto, o eu retoma a conversação e assume seu posto: "oi, eu posso ir ao cinema; eu estou almoçando" etc. qual é o momento da passagem do ela para o eu? o quanto não há de medo na recusa do eu em dizer "sou eu", como se ao revelar-se assim cruamente, o eu se expusesse ao desconhecido?

sexta-feira, 16 de março de 2012

aniversário

se você tenta, se você enfrenta, se você inventa, se você é briguenta, se você come menta, se você arrebenta, se você se contenta, se você é ciumenta, se você aumenta, se você condimenta, se você cumprimenta, se você se aposenta, se você é desatenta, se você arregimenta, se você cimenta, se você é cinzenta, azarenta, atenta, cruenta, barulhenta, avarenta, nojenta, fedorenta, molambenta, fraudulenta, truculenta e sonolenta, enfim e por tudo, se você quarenta e nove, você cinquenta.

quinta-feira, 15 de março de 2012

conta

o pai de gustav viu que a conta de luz estava muito alta, foi verificar e descobriu que o filho ficava escrevendo sob a luz do abajur até altas horas da noite. furtou os poemas do filho, ditou, mandou datilografar, imprimiu e entregou para seu amigo da corretora de seguros ler. o amigo também escrevia e devia entender aquilo. o amigo era franz kafka. o pai de gustav o levou para conhecer franz. no primeiro encontro, com gustav muito tímido, kafka, para quebrar o gelo, disse: não se preocupe, minha conta de luz também é altíssima.

terça-feira, 13 de março de 2012

luz

quando acaba a luz e cessam os barulhos dos aparelhos elétricos, como a geladeira e o freezer, a qualidade do silêncio noturno é diferente e começam a se ouvir os sons dos insetos, dos grilos, dos pássaros ainda acordados, que provavelmente estranham a ausência dos barulhos habituais. a consciência é o barulho da geladeira, que fica lá, imperceptível, dando um contorno preciso e cansativo aos nossos pensamentos. no sono é como se acabasse a energia e os pensamentos ultrapassassem esses rijos contornos e se diluíssem no mundo líquido e gasoso dos sonhos, dos grilos e dos passarinhos acordados em hora errada.

sábado, 10 de março de 2012

presídio

ontem, saí do presídio feminino, depois de uma aula para as presidiárias e, do lado de fora, dentro do espaço assim chamado livre em que vivemos, senti que lá também é um dentro. lá é o aqui da luzia, da janete, da rose, da mônica, da joelma e de mais onze meninas que me ensinaram que, que me ensinaram que, que me ensinaram.

quinta-feira, 8 de março de 2012

dislexia

benedito e inês eram só duas palavras, provenientes das expressões "será o benedito?" e "inês é morta". mas, numa ocasião, alguém os quis pronunciar em sequência e, durante o encontro na língua, antes de serem emitidos para o ar, para nunca mais, as duas palavras se apaixonaram, assim, como num esbarrão. recusaram-se então a serem emitidos pela pessoa que, sem entender nada, não conseguia pronunciar aquelas duas palavras, que não saíam mais de dentro da boca do sujeito. enrolaram-se ali mesmo e ali ficaram. o resultado disso é que o indivíduo ficou disléxico destas palavras e foi daí que surgiram as expressões, ainda não utilizadas em português, "será a inês" ou "benedito é morto". mas aguardem, porque assim que as duas palavras se reproduzirem, todos estarão, como que do nada, falando estas expressões por aí.

segunda-feira, 5 de março de 2012

anistia

então vão anistiar os desmatadores que têm dívidas acima de um milhão de reais. pois ficamos assim. anistiem também: os torturadores, os trituradores, os tratores, os terrores, os tremores e depois adquiram amnésia, que é de onde vem a palavra anistia, e esqueçam-se a si mesmos.

sábado, 3 de março de 2012

lego

era uma vez três categorias: o índio, o lego e o superlego. o índio era, por sua natureza, selvagem e livre. o superlego, também por natureza, só queria saber de cálculos e montagens complicadas. o lego buscava manter o equilíbrio entre os dois, propondo montagens difíceis, mas prazerosas. no entanto, mesmo com essas diferenças, o índio e o superlego acabavam se dando bem, porque o índio era ótimo na montagem de grandes desafios propostos pelo superlego que, por sua vez, também era excelente nadador e caçador. o lego então ficava, durante muito tempo, quieto, só observando o índio e o superlego brincando: ou de desmontar as caixas ou de atirar pedrinhas um no outro.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

manejo

durante minhas breves insônias infantis e para tentar adormecer, eu imaginava uma roda gigante girando de forma cada vez mais veloz para um lado: direito ou esquerdo, não importava. quando ela atingia o máximo de velocidade, eu forçava a imaginação até conseguir fazer girá-la para o outro lado. nem sempre eu conseguia e ficava contente quando o manejo era bem sucedido. venho fazendo mais ou menos isso até hoje, com mais ou menos sucesso e empenho e, no fim, acabo adormecendo.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

neide

depois de uma viagem à california, onde tudo é tecnológico, me sinto bastante anacrônica. mas, por outro lado, vejo que lá, as últimas tendências dos usuários de tecnologia de ponta são usá-la para que tudo seja cada vez mais molecular, local, comunitário e solidário e, além de tudo, aplicado a alguma prática que reverta em serviços para a comunidade.então penso assim: enquanto os fissurados em tecnologia estão indo com o fubá, minha amiga neide rigo já voltou com dez polentas, porque é isso mesmo o que ela faz já há bastante tempo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

situação

não sei exatamente por que, mas não suporto o eufemismo, em língua inglesa, "there's a situation here", quando o falante quer se referir a algum problema que está ocorrendo. situação é, na etimologia, localização.já no uso corrente, é usada como condição, circunstância, ocorrência. por que razão esses significados todos deveriam derivar em problema? de alguma forma esquisita, é como se o próprio fato de algo acontecer já implicasse em uma dificuldade ou então como se qualquer possibilidade de conflito devesse ser evitada ou controlada. por que eles não deixam simplesmente a situação acontecer?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

feijão

jonathan franzen escreve bem. digamos que até muito bem. mas alguma coisa em seu jeito americano-esperto-rápido-engraçado-irônico-auto-depreciativo soa melhor do que aquilo de que ele fala. talvez ele precisasse falar português para ser mais lento,menos soberanamente fluente. ou talvez ele precisasse ser menos seguro de seu estilo orgulhosamente fracassado. ou talvez ele só precisasse mesmo é de comer um pouco mais de feijão.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

ônibus

precisava pegar um ônibus em berkeley. saindo de um bar, vi um sem-teto e perguntei inocentemente se passava um ônibus naquela avenida que me levasse até meu destino. ele pediu que eu esperasse um segundinho, sacou o iphone, teclou uns botões e me disse que um ônibus passaria naquele local para me levar aonde eu queria dali a onze minutos. não deu outra.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ondas

as ondas, as vagas, the waves, le vagues, las olas, die wellen, les ones, den bolger, de golven, as ondulações, as oscilações, as ondas de azar, de calor, de sorte, a onda de violência no brasil em maio de dois mil e seis, as ondas de choque, as rádios de ondas curtas, os elementos descritivos do mar, as ondas químicas, físicas e matemáticas, as ondas de raiva e de amor, as ondas, as ondas, as ondas, as ondas que eu não vi e as que eu vi ontem, entre a uma e as três da manhã,em big sur, batendo contra as rochas e formando espuma branca, as ondas se extinguem inextinguivelmente e o momento de sua extinção é o mesmo momento de sua explosão branca de beleza. as ondas ondulam. é isso o que elas fazem.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

cama

devo confessar que, até o dia de hoje, eu não sabia o que era, em toda sua aparente simplicidade, uma cama. uma cama que é preciso escalar; que tem um colchão que ao mesmo tempo restaura, cura, acolhe, aninha e recebe; com lençóis e travesseiros que acariciam e aguçam os sentidos; com uma dimensão que explica ao corpo o que e para que ele é; com uma temperatura capaz de dissolver quaisquer convicções ideológicas e estéticas. que perigo é uma cama.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

sequoias

num painel que maracava a idade das sequoias, no parque muir, vinha a marcação: novecentos ad. quatro portugueses encasacados de couro preto prestaram atenção e um deles disse, sabedor: veja, é de antes de cristo! ao que o joão respondeu: não, é depois. ad é anno domini. o português então retrucou: ah, esqueci que estava em inglês. pensei em português de portugal! mas o que é ad em portugal? antes de?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

eu

fernando pessoa, como sempre, estava certo. o melhor de viajar não é ganhar, é perder. e o que de melhor se perde, em viagens, é o eu.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

tâmaras 2

depois de comer a melhor torta de tâmaras que se pode conceber em todas as galáxias, no melhor restaurante imaginável em todo o cosmo, o chez panisse, escrevi um poema em homenagem a siew-chinn, a doceira malasiana do lugar. nele, brinquei com os três significados da palavra tâmara em inglês: date (data), date (encontro) e date (tâmara). levei o poema até ela, para agradecê-la pela graça alcançada. ela se emocionou, nós nos olhamos por alguns segundos, as duas ameaçando se aproximar uma da outra e finalmente nos abraçamos e nos beijamos. ela pendurou o poema no mural e me perguntou, timidamente: você gostaria de um pedaço da torta? diante do meu espanto afirmativo, ela cortou o equivalente a meia torta e me deu. ela me deu a torta. ela me deu a torta. ela me deu a torta.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

tâmaras

a torta de tâmaras que eu comi hoje não é mais do que uma torta de tâmaras, como se diria no caso de algo excepcional, espetacular, maravilhoso. não. nada disso se aplica a ela. predicá-la seria ficar aquém do que é o sabor uno e íntegro de uma coisa que, por ser somente o que é, é mais do que se pode dizer dela.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

bonde

hoje, no bonde de san francisco, sentamos no mesmo banco uma senhora bem velhinha da georgia, na rússia, moradora de washington, sua filha também russa, um oncologista holandês que veio para um congresso aqui nos estados unidos e que mora na bélgica e eu, uma brasileira filha de sobreviventes de guerra iugoslavos. um carro parou em fila dupla e o bonde teve que parar para esperar o carro ser rebocado. enquanto esperávamos, o motorneiro, um americano forte e estiloso que mascava chiclete, disse: agora fiquem todos quietos; eu preciso relaxar. nosso pequeno mundo do bonde ficou em silêncio e o motorneiro relaxou.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

agnés

agnés varda é um elefante caminhando altivo e certo numa cidade de vidro, sem nada nunca derrubar. é uma cigarra cujo canto não a faz fenecer. é uma andorinha que, quando capturada pelo gavião, convida-o para um voo de trajetos curtos e fulgurantes e o distrai da predação. é só uma minhoca que está no seu quintal e que, com um pouco de descuido, você inopinadamente esmaga. não tem importância. ela reaparecerá: na sua janela, na escova de dentes, no rosto daquela mulher da padaria.

domingo, 29 de janeiro de 2012

café

sabe aquela mulher que tem quarenta e quatro anos, três filhos, é bordadeira, o marido é pipoqueiro e percussionista nas horas vagas e que mora em purwakarta, na indonésia? então. os filhos já, já vão voltar da escola e ela, agora, está passando um café.vai tomá-lo numa xícara que é a sua predileta. a asa está quase quebrando e o pires sumiu, mas ela só usa essa xícara mesmo, porque é de uma porcelana bem fininha.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

medo

minha filha, meu filho, o que eu posso ensinar a vocês? só uma coisa: que o medo, o grande medo, o medo o, esse é que é o mal, esse é que é o mau.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

alma

se há metafísica na ideia de alma, como se explicam as doenças mentais e cerebrais? será que se trata, então, de uma alma fraturada? para os que nascem com doenças mentais, seria uma condenação em vida, uma condenação à vida? e para os que as adquirem durante a vida, seria então um castigo, uma alma quebrada, a ausência de perdão?

domingo, 22 de janeiro de 2012

lote

deputar significa, na origem, dar destino a, designar o lote cabível. segundo o pensamento grego, a cada ser cabe um lote na vida e são os deuses que os atribuem.num tempo laico, confiamos aos deputados o direito e o dever de fazê-lo. o que temos, agora, são deputados que entenderam que o lote que devem designar é, principalmente, o próprio. como fazer para que nós, os desloteados, possamos cortar a esses loteadores ilícitos, tamanha apropriação do que é nosso? por que salários gasolina, benefícios de moradia e saúde, passagens, cópias de xerox, correios, telefone, empregados, décimo terceiro, quarto e quinto salários? nós, cujos lotes foram mal destinados, como fazemos? por que aceitamos a malversação do nosso lote?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

intenção

nada pior do que a expressão "de boas intenções o inferno está cheio", uma ideia de acordo com a qual os fins devem ser mais levados em conta do que os meios. mas não queremos uma sociedade em que vigore justamente o contrário? em que os meios é que determinem os fins? na ética do bem viver, ou do viver bem, deve valer a máxima de aristóteles: nenhum homem que não se alegra a agir com justiça é justo.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

ciúmes

numa exposição de fotografias lindas, senti de repente muita tristeza: aquelas imagens eram tão vivas, vibrantes, verdadeiras, mas todos aqueles que sorriam, cantavam, olhavam, agora estavam mortos. onde estavam aquelas pessoas? onde aqueles lugares, aquelas sombras, onde a voz? soube por um instante que também eu, a olhar aquelas fotografias, era como uma imagem não fixada do nada que também eu algum dia seria, algum dia serei. e assim também com quem estava ao meu lado, o espaço da exposição, tudo. achei injustas e ladras as fotos, por nos iludirem, trazendo para o agora o que já não é e por roubarem ao tempo um momento que ele levaria e às pessoas um instante que era só delas. lá estava eu contemplando uma beleza que talvez nem mesmo os atores da foto chegaram a conhecer, num tempo e num lugar que eles jamais imaginariam. não quis me tornar uma imagem para o futuro; tive ciúmes de mim.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

lucro

se eu pudesse, seria uma abelha escondida atrás da panelinha que o manuel bandeira usava para aquecer o leite, a mesma que aparece no mais precioso curta-metragem que já foi feito na história, e na hora em que ele fosse pegar na panela eu me transformava em gente e pedia para ele namorar comigo. eu dizia assim: vai, por favor! e ele respondia: está bem, mas só por hoje, que amanhã eu já tenho um compromisso. eu aceitava, porque eu já estava no lucro mesmo.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

desirée

dona tereza beatriz, faxineira, sessenta e oito anos, procura por sua nora desirée, grávida de quatro meses, na cracolândia. por onde estar, por onde fazer, por onde andar para abraçar tereza beatriz e desirée? como estar longe e perto delas, elas, falar delas, como estar aqui e elas no outro delas, nós, os longe delas, nós sem elas, nós com elas? quem sermos nós? dona tereza beatriz e desirée, nos perdoem, não nos perdoem, não façam nada. como estamos sós.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

problema

o problema é que muita gente continua junto para discutir melhor os motivos que os levam a não querer mais ficar junto.

sábado, 7 de janeiro de 2012

saco

não sei se os animais pensam - parece que alguns pensam, sim. mas ninguém, como os humanos, pensa que pensa. esse é nosso veneno e nossa delícia. quando, quanto e como a consciência da consciência é veneno ou delicia depende justamente de como se pensa que se pensa, se sabe que se sabe, se sente que se sente. mas que é um saco, é.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

donos

os donos de uma beleza singular, um carisma único, uma inteligência exemplar e afins estão sublocando ou vendendo suas propriedades, por preços que variam de módicos a exorbitantes, dependendo da procura.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

definição

a melhor maneira de definir alguma coisa é dizê-la indiretamente. se possível, sem nem mencioná-la. ou, como faz william saroyan, assim: "ele pegou o ovo da galinha e o deu à mãe. com isso, ele quis dizer aquilo que os homens esqueceram e as crianças ainda não podem saber."

domingo, 1 de janeiro de 2012

isolamento

aprendi que a poesia é isolamento da palavra. retire uma palavra do meio de uma multidão. por exemplo: multidão. isole-a. veja como ela se transforma no que ela é. uma multidão sozinha ou um falso aumentativo. agora aproxime-a de outra palavra isolada. por exemplo: outra. assim: multidão outra. já é quase um poema.