segunda-feira, 30 de setembro de 2013

mercearia

durante a revolução francesa, os trabalhadores resolveram impedir o funcionamento eficaz de algumas máquinas, emperrando a engrenagem com seus sapatos. em seguida, saíam para celebrar o feito em mercearias onde comiam pães e bebiam vinho. ou então: em casos de fome extrema, algumas pessoas acabam apelando para os próprios sapatos, que se transformam em pão. em outros casos, esse gesto pode também ser considerado um protesto contra o status quo. última chance: padeiros do século quinze, ao assarem pães com pouca farimha, descobriram que sua forma lembrava um sapato. resolveram então usar isso como símbolo de contestação contra os altos impostos sobre o trigo. desisto. não consigo estabelecer uma relaçao coerente para o fato de sapato, ciabatta e sabotagem terem a mesma origem etimológica.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

peixe

pedi um peixinho dourado a minha mãe, daqueles que se vendia na feira. ela comprou, colocou num aquário no centro da mesa da sala e, enquanto eu dormia, feliz, colocou um espelhinho no fundo do aquário, para que o peixe não se sentisse sozinho. durante a noite, o peixe ficou batendo a cabeça no espelho, provavelmente tentando conversar ou matar o estranho. acordou morto, ele, e eu, achando que minha mãe era "a mulher que matou os peixes".

terça-feira, 24 de setembro de 2013

infinito

vejo que há um novo empreendimento imobiliário em pinheiros, cuja propaganda, afixada nos tapumes, diz assim: adquira o seu infinito particular. o que foi feito da língua para que ela pudesse se moldar tão docilmente a esse escândalo semântico e ontológico? por que o substantivo "infinito" se deixa juntar assim ao adjetivo "particular" em nome de um apartamento? quero falar gascão, yurok, alvernês,picardo, norn ou gúntico. quero só dizer, como o vendedor que acaba de passar aqui na rua: "olha a mandioca, mandioca, mandioca, banana", mas não quero uma língua tão prestativa.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

padre

uma vez, em roma, sentada na calçada de uma praça, vi passar uma padre. era jovem e estava correndo. mesmo assim, no meio da correria, parou para me olhar, sentada ali. eu o vi me olhando e imediatamente me apaixonei. penso que foi recíproco. logo em seguida ele seguiu no que fazia. lembro só de um olhar ao mesmo tempo rápido e arregalado e um rosto livre, por um momento, do medo e da tensão das coisas. já se passaram quase trinta anos, mas ainda estamos lá, eu e ele, eu sentada e ele de passagem. se você não acredita, passe lá e veja.

domingo, 15 de setembro de 2013

varão

sou a terceira de três filhas e minhas duas irmãs são, respectivamente, oito e doze anos mais velhas do que eu. fui a terceira tentativa de um varão. quando pequena, contavam que meu nome tinha sido escolhido porque, ao ver que eu era menina, meu pai, estrangeiro, teria dito, "no e minha". quem contava muito essa história era a tia regina, ainda acrescentando que ele se sentou na escadaria do hospital e chorou. não tenho mágoa disso e ainda fico triste por ele, que deve ter se frustrado muito. lembro da tia regina que, quando eu tocava a campainha (eu morava no trinta e dois e ela no onze), abria a porta, me via e dizia: "ói ela, com as calças do pai dela!". não tem nada a ver, mas de alguma forma, tem também.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

terça-feira, 10 de setembro de 2013

domingo, 8 de setembro de 2013

polícia

polícia vem de polis, cidade. militar, de milícia, ligado à guerra. polícia militar é como guerra da, guerra na cidade. é um paradoxo, mas nunca foi tão real. a polícia, que deveria preservar a pólis, ser da pólis, é contra ela. declarou guerra. os cidadãos, citadinos, se tornaram reféns. quem, quando, como, onde salvará a polícia de si?

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

galinha

não tenho certeza absoluta do que vou dizer, mas vá lá. gosto de algumas coisas do "politicamente correto". por exemplo, acho importante que aqueles que eram chamados de "excepcionais" passem a ser chamados de "portadores de deficiência". também acho importante que as empresas sejam obrigadas a oferecer empregos a eles. mas tem alguma coisa nisso tudo - por exemplo, a rejeição ao fato de alex atala ter matado uma galinha ao vivo, na dinamarca - que, a mim, nascida nos anos sessenta, soa como um corte laminar do trágico na vida. o trágico não comporta o asséptico e eu não concebo a vida sem ele.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

andré

dez palavras lindas: asa, mar, linhaça, plinto, pulo, sono, tiara, válvula, levedo e crise. uma combinação linda de palavras: meu grito lixa o céu seco. um poema lindo: consoada, do manuel bandeira. um tempo curto: dois dias. um tempo longo: alguns anos. pronto. nada cura a morte do andré.