quarta-feira, 30 de novembro de 2011

fanfarra

gustav mahler contou a sigmund freud que uma vez, na adolescência, ficou muito perturbado ao testemunhar uma briga violenta entre seus pais e saiu de casa chorando e batendo a porta dramaticamente. assim que pisou na rua, uma fanfarra passava tocando uma marcha militar. para ele, esse contraste entre a tragédia interna e a indiferença cotidiana foi fatal. não conseguia mais compor nada dramático sem que houvesse a interferência indesejada do popular, do baixo. a fanfarra seguia normalmente, ignorante dos problemas daquele eu em desasossego e foi isso, talvez, o que lhe permitiu criar o que agora os críticos consideram como uma mistura única do alto e do baixo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

natalie

na terceira volta que eu dava no parque, a natalie começou a me seguir. o pai a tinha desafiado a me acompanhar. ela tem onze anos, cabelo até a cintura, é a primeira aluna da escola e quer ser advogada. o pai é vigilante noturno e a mãe sumiu, porque bebe, fica violenta e desaparece. o pai chega em casa às oito da manhã, dorme até o meio dia e cozinha. ela arruma a casa e cuida dos cachorros. perguntei se ela queria ir comigo nos aparelhos de ginástica do parque. disse que não podia porque o pai sentia dor nas pernas e ela precisava fazer massagem. daqui a pouco ela aparece nos aparelhos; o pai deixou. conversamos sobre música, livros e família. ela faz penteados como os de uma noiva, ela disse. dentro em pouco subiu nos aparelhos também a natasha, sua prima. éramos natalie, noemi e natasha pedalando.

sábado, 26 de novembro de 2011

urgência

instante vem de instar, de urgência, de algo que urge acontecer.é na urgência, na necessidade da ocorrência que se define essa extensão infinitamente breve do tempo: aquela que sempre passa e por isso sempre já passou, mas a única em que as coisas realmente ocorrem. o tempo urge, essa expressão aparentemente nefasta, na verdade pode ser muito mais bela. é, no fundo, o mesmo que carpe diem. agarre urgentemente o tempo e transforme-o finalmente no que ele é: um instante.

domingo, 20 de novembro de 2011

espiriteira

alguma coisa na distinção tão nítida entre a paixão e o amor não me convence. parece tão claro que a paixão é fogo, que ao consumir o objeto também se auto-consome e que o amor é ar, água ou terra, meios menos agressivos, mais duradouros, mas também por isso mais exigentes do seu objeto, já que ele é obrigado a interagir com eles, tornando-se assim também sujeito. a ideia grega da paixão como doença e passividade, que rouba a razão à criatura e o transforma em objeto dos sentidos já pode ser ultrapassada, assim como já foram várias outras. por que a paixão ainda precisa ser isso, se já não há mais o tabu da fidelidade eterna e da exclusividade? por que não começarmos a reeducar alguma coisa em nós para que a ideia de paixão possa se misturar com a ideia de amor (afinal, é tudo ideia) e para que os amantes possam seguir apaixonados e o fogo possa ser dosado, como numa espiriteira?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

coragem

ele segurou no meu braço, antes mesmo de dizer oi e disse: minha mãe morreu. todo o carinho que tenho por ele se fixou na minha pele pelo resto da noite. não conseguia mais olhá-lo, porque se olhasse o abraçaria e diria que nenhuma frase tinha sido mais importante do que esta. mas não tive coragem.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

beça

coisas que adoro falar: essa rua "cai" na marginal; deu no que deu; vai de "fasta"; virabrequim; é nós; ele "pegou" pesado; à beça; falou e disse; fala aí; tá pensando o quê?; sou mais eu; cê vai se ver; sei lá; lá vou eu; que quer dizer?; biruta; sim; que hora é essa?; agorinha mesmo; os cara é tudo mentiroso; vale nada não; faz isso não; tô de mal e tô de bem; faz de assim; tá tirando uma; ó; vai ter troco; tô te falando; é só um pulo; pau na máquina; que preguiça; vai se catar; tô louco pra saber; nossa!; ah, vai!; jura?; cê tá sonhando que eu vou fazer isso!

domingo, 13 de novembro de 2011

bárbaro

o romance "esperando os bárbaros", de coetzee, é como um romance de kafka menos concentrado, menos absurdo e, até por isso, ainda mais absurdo. nele, vai-se percebendo que os bárbaros, mais do que o outro, são o mesmo. o bárbaro é aquele que teme a quem nomeia bárbaro; é, mais do que tudo, o temeroso; aquele que em tudo enxerga o temerário. o maior outro de todos é a morte e é ela que se teme no outro. mas ela vem de qualquer forma e de onde menos se espera e temê-la no outro é antecipá-la, é viver a morte antes que ela venha. o temor do bárbaro mata e morre.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

fflch

eu adoro a fflch. e não é só porque adoro quem tem a braveza e a bravura de estudar letras, história, geografia, ciências sociais e filosofia. não só porque adoro pessoas menos adaptadas ao rebanho. não é porque adoro cabeludos, maluquinhos e melancólicos/engraçados em geral (já que na fflch há muito mais do que isso). não é também porque gosto de quem sonha acordado. é porque a fflch, com tudo e apesar de tudo, é boa. produziu e produz dentre os melhores pensadores e pensamentos do país. ajudou e ajuda a mudar muita coisa ruim que acontece no brasil, nas áreas da cultura, da educação, da arte e da política. porque seus estudiosos ajudaram a repensar o racismo e os preconceitos do país. porque seus professores de literatura estão entre os melhores que já tive e que minha filha poderá ter tido. porque lá se discute, se discorda e se vive. porque, se ela é decadente, como disse um apresentador conhecido da televisão, ela não é fedidíssima. e se ela é decadente, não é porque lá há maconheiros. mas porque os poderes ainda não perceberam que só a cultura e o pensamento é que podem mudar o brasil.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ato

esperar vem de olhar profundamente. quem espera olha tão fundo no futuro, que antecipa os acontecimentos. o esperador, na origem, é assim um visionário. que diferença do esperador atual, nas filas, nos e-mails, nos crediários, que espera, espera e nada antecipa. a condição da inação na atualidade é a espera. e pensar que ela já foi a propiciadora do ato.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

diferença

de como os sobrenomes estão entre as maiores diferenças entre a burocracia e a vida: aguiar é que habita as águas; barbosa é um lugar onde há muitas árvores com barba de bode; carvalho é uma árvore; castanheiro também, pereira e amoreira também; delfim é um peixe; eustáquio é carregado de espigas; fagundes é alegre; garcia é gracioso;haus é casa; inácio é ardente; jasper é tesouro; koch é cabeça; lima é uma fruta; macedo é importante; nunes é um peixe; oliveira é uma árvore; prestes é disponível;quintana é casa de campo; rodrigues é famoso pela glória; sauer é mulher paciente; teixeira é um fio de luz; uchoa é lobo; ventura é sorte; weiss é sabedoria; xavier é formosa; zuquim é abobrinha.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

nada

originalmente, pena é o mesmo que punição. quem merecesse pagava uma pena, ou um preço que corresponderia à punição pela falta cometida. as coisas que valem a pena, dessa forma, valem a punição que elas implicaram. se pensarmos bem, portanto, só vale a pena na vida o que não vale pena alguma, pois aquilo que implica em pena não vale nada.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

a

ele é a pessoa, porque ele não é "a" pessoa. ele não sabe tanto. ele fala a língua dele. ele está à minha frente. está atrás de mim. ele faz piadas bobas. ele pensa muito nos passarinhos.