segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

palhaços

em barcelona, combinamos com pepa, mulher de joan brossa, que gostaríamos de entrevistá-lo na manhã seguinte. ela disse que não havia interfone em seu prédio e que, no horário combinado, ela nos esperaria na rua. chegamos cinco minutos atrasados e não havia ninguém à nossa espera. meia hora depois, pepa apareceu, nos viu e disse: mas você já não entraram? dissemos que não, que tínhamos nos atrasado. ela disse que, no horário combinado, havia um homem e uma mulher vestidos de palhaços, sentados no banco em frente ao prédio. pepa perguntou: o que vocês querem? eles disseram: conversar com joan brossa. ela achou que fôssemos nós e os deixou entrar. naquele momento, eles estavam entrevistando joan brossa. nós dissemos: não! nós é que somos nós, não os palhaços! ela disse: bem, então vocês entram depois.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

vida

o cínico, por ser cínico, e portanto, incrédulo, não acredita que é possível mudar aquilo que ele finge criticar. com isso, acaba servindo àquilo que critica. assim, o cínico, além de cínico, é também covarde. e é por isso que o cinismo é um companheiro da morte. para ficar do lado da vida não se pode sempre desconfiar.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

nojo

saindo da padaria, encontrei um ex-aluno, que me abraçou e perguntou: noemi, agora eu posso te fazer uma pergunta. você disse que depois que eu me formasse e começasse a gostar de ler, eu descobriria alguma coisa na literatura. agora já me formei, gosto de ler, mas não descobri nada. o que era? eu disse: não sei. acho que era a própria literatura. ele fez uma careta de nojo e respondeu: só isso?

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

gelsomina

gelsomina, fique comigo nas noites escuras e me ensine a ter sonhos como os seus; gelsomina, toque no trompete aquela melodia que faz as mulheres e os homens chorarem; gelsomina, me deixe te dar uma colherada de sopa da tua panelinha; gelsomina, me acompanhe pelas cidades desconhecidas; gelsomina, me ensine a arregalar os olhos; gelsomina, não chore mais.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

galocha

o real e o verdadeiro são duas coisas totalmente diferentes, já que o irreal é verdadeiro e o falso pode ser real. além disso, o real é invariavelmente chato, esvaziante, enquanto o verdadeiro pode ser sempre uma fonte de novidades e possibilidades. para agravar o estatuto do real, ainda tem sua etimologia, ligada à realeza, que, por um tempo, determinava o que era real. fiquemos, assim, com o verdadeiro e esqueçamos o real, esse chato de galocha.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

vitrolinha

meu pai se trancava no meu quarto e ficava escutando músicas na minha vitrolinha laranja. ele apagava a luz e eu, do outro lado da porta, o escutava chorar. sei que isso é verdade, mas, de alguma forma, parece mentira. é estranho testemunhar que o pai tem uma verdade que nunca se conhecerá; e talvez por isso a verdade pareça falsa.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

superfície

como superar a sábia obviedade de: "a inveja é uma merda"; "amigo é a melhor coisa do mundo" e "demora, mas passa"?. e por que superar, se o óbvio é o evidente, o que está à vista? por que superar a superfície?

domingo, 13 de fevereiro de 2011

égua

em inglês, pesadelo é, com razão, a égua da noite. ela vem, passa correndo, nos rapta temporariamente e depois nos derruba com violência de volta para a vigília. nos abandona à ignorância da consciência e volta para a floresta louca do inconsciente, cujas razões só ela conhece.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

espera

no romance "a fera na selva", de henry james, john não se dá conta de que o objeto de sua espera infinita esteve a vida toda diante dele próprio. a espera é um tempo narcísico e inflado; ocupa tanto todos os espaços do esperador, que o impede de ver além da espera. o esperador compraz-se tanto em ser sujeito e vítima da espera, que a realização de seu conteúdo pode, para ele, não passar de frustração.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

pergunta

por que deus pergunta a adão: "onde está você, adão?", se ele certamente sabe onde adão está? dizem que o efeito e a intenção desta pergunta é moral e repressivo, não literal. mas então por que deus faz a adão uma pergunta de caráter irônico? por que esta obliquidade verbal naquele único momento de suposta harmonia linguística? por que ele não diz, simplesmente: "adão, não faça isso"? deus, dessa forma, se assemelha mais a uma mãe controladora do que a um pai protetor. em alguns aspectos, pode-se dizer que deus é uma ídishe mame.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

lorenzo

graças a lorenzo, um italiano não judeu que primo levi conheceu em auschwitz, e que trabalhava numa fábrica próxima, ele e seu amigo alberto sobreviveram ao campo de concentração. lorenzo levou sopa e pão para os dois, todos os dias, durante quatro meses, pondo em risco a própria vida, sem ganhar nada em troca. é muito difícil, talvez impossível, imaginar como seriam as ações e reações que eu, ou qualquer outra pessoa, teriam numa situação como esta. mas lorenzo, com seu silêncio, sua recusa sincera em receber alguma forma de agradecimento, seu gesto arriscado e decisivo para a vida de primo levi, é, para mim, uma verdade serena que sustenta um passado que não tive.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

maçã

se eu esquecer desta história, como diz a reza, que me caia a mão direita: meu querido amigo henrique é cineasta. numa viagem pela antiga união soviética, ao anunciar que passaria por uma cidadezinha do interior, foi recebido na estação do trem, após um grande atraso, pela orquestra da cidade, cujos músicos estavam todos adormecidos pela plataforma. o maestro o levou até sua casa e tratou dele o melhor que pode, apesar das dificuldades todas. no dia seguinte, o henrique tinha que ir para outra cidade. foi acompanhado novamente pela orquestra local, que tocou para ele e, como presente, recebeu do maestro uma companhia para a viagem: um ovo e uma maçã.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

finito

ontem, num filme meio bobo na televisão, ouvi essa pergunta também meio boba, mas interessante: "por que fazer o mundo melhor? por que não fazê-lo menos pior?" ontem também, num livro nada bobo de goethe, li esta outra frase e acabei percebendo que as duas são, na verdade, muito semelhantes: "se queres caminhar para o infinito, caminha para todos os lados do finito".

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011