sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

dois mil e doze

aquele beija-flor que você acaba de ver, que já partiu, é todos os beija-flores. sabe aquele beija-flor que sobreviveu ao inverno e não voou junto com os outros e mesmo assim conseguiu resistir? então, esse que você vê agora é aquele. essa criatura rápida e magnífica é aquele mesmo, é aquele.
(baseado no conto o beija-flor que viveu durante o inverno, de william saroyan)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

vivian

existe alguma coisa no sentimento da amizade que é definitivamente melhor do que o amor. muitos já disseram isso. mas agora, neste momento em que sinto profundamente o amor fraterno por ela, que quero estar ao lado dela, abraçá-la e acolhê-la, me parece que só esse amor é que permite deixar. um amor que deixa, deixa tudo, em todos os sentidos - de permitir e de abandonar - só pode mesmo ser o melhor jeito de amar.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

rússia

por favor, leitores da rússia: me digam quem são vocês. digam harashó, ia znaiu, ia hatchu, otchen gariatchaia voda. me digam se aí em moscou chove ou faz frio, muito frio. se vocês gostam mesmo de borsht e se vocês querem vir aqui, para são paulo e experimentar a comida do mocotó ou aprender a falar estou com preguiça ou qualquer outra coisa que vocês queiram. me digam ia tibia liubliu e me expliquem por que maiakovski tinha visões tão absurdas do futuro que nós agora estamos vivendo. e também me digam se é mesmo verdade que os livros de poesia vendem quinhentos mil exemplares na rússia, porque, se for esse o caso, estamos eu e mais uma penca de amigos queridos, de mudança para aí. algum de vocês pode nos hospedar?

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

uva

queria porque queria levar a fanta uva, recém lançada, no pic nic da escola, que seria no jardim botânico. minha mãe disse que não dava. insisti, ela deixou e ainda abriu a garrafa, porque eu não teria abridor para isso. fiquei segurando a garrafa como se fosse uma estatueta durante todo o passeio. nem prestava atenção em nada-queria exibir a fanta uva. na hora do lanche, abri a lancheira e paf, derrubei a garrafa, que quebrou, deixando o líquido lilás escorrer pela grama.não chorei. tenho compaixão por aquela menina que era eu, mas também certo orgulho.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

mirra

melquior tinha setenta anos, cabelos e barbas brancas e vinha de ur, na caldeia. gaspar tinha vinte anos e vinha do mar cáspio. baltasar era mouro, barbudo e vinha do golfo pérsico. melquior carregava ouro, gaspar, incenso e baltasar, mirra. eles se encontraram às portas de jerusalem. todos eles eram astrônomos e seguiam o brilho de uma estrela nova. ao se avistarem, melquior perguntou a baltasar: o que você traz? baltasar respondeu que mirra. gaspar e melquior não sabiam o que era mirra. ao descobrirem que era uma árvore espinhosa, de folhas caducas, deram muita risada e acharam este presente melhor do que ouro e incenso. baltasar então disse: vocês querem trocar? não, eles disseram, não faz diferença!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

acaso

uma das maiores desvantagens da internet em relação aos meios físicos (livros, jornais), é a diminuição e possivelmente até a eliminação do acaso, essencial no trabalho de criação e de investigação. como a internet não é horizontal, exposta e como ela depende do usuário para que os resultados apareçam, dificilmente ela nos surpreende com algo inesperado, uma capa azul que lembra a parede da casa da avó ou uma lombada estranha manchada, que muda todo o rumo do que vínhamos fazendo. é preciso uma parcela de descontrole tanto no trabalho expressivo como no científico e para isso é preciso que algo caia na cabeça do criador: um volume, um documento, uma cópia de xerox mal encaixada.

sábado, 17 de dezembro de 2011

resistência

a resistência é o que define a matéria e o ser. o indivíduo que não resiste não se define, é amorfo, sem limites. mas às vezes,entregar-se como uma pena ao vento, para aqueles para quem a resistência se tornou um hábito e uma necessidade, pode ser a maneira mais radical de resistir.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

carochinha

o verbo "contar" se usa tanto para historias quanto para números e isso não só em português, como em hebraico, holandês, alemão e espanhol. a guematria é um ramo da cabala que atribui valor numérico às letras do alfabeto e assim calcula o montante de cada palavra da torá, a partir do qual interpreta seu significado oculto. no hebraico, portanto, fica mais ou menos esclarecida a relação entre números, letras e histórias. e mesmo que não se conheça por que o mesmo fenômeno ocorre em outras línguas, é bom imaginar que em cada número se encerra uma história; que contá-los é narrar o mundo e que a matemática é uma fábula em que acreditamos, sem pensar que é tudo uma grande mentira, como os contos de fada e as histórias da carochinha.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

postigo

quero um postigo para poder abrir a porta, mas só o necessário; quero ver sem ser vista, entrever as coisas, saber cada vez menos. quero cada vez mais postigos instalados nas portas. não por proteção, mas por delicadeza.

domingo, 11 de dezembro de 2011

vassoura

tanto estética quanto ideologicamente, não suporto generalizações. quanto à ideologia, acho temerárias palavras como povo, nunca e verdade. onde elas aparecem, costumam comparecer também o autoritarismo e o fanatismo. já em literatura, não posso ver palavras como amor, beleza e dor. prefiro de longe travesseiro, vassoura e alface.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

caetano

o gênio não é aquele que é mais ou melhor do que todos. todos temos um gênio, que é a vida que nos gera e que é gerada em nós. caetano veloso, em seu ultimo disco, recanto, cantado por gal costa, não é um gênio só porque tudo nesse disco é melhor, mas porque tudo nesse disco é a voz do acolhimento a essas pulsões geniais: a vida e a morte que nos habitam.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

tão

o que a testemunha não vê é tão horrível quanto o que ela vê. não ser testemunha é tão ou mais horrível do que sê-lo. não queremos sê-lo; precisamos sê-lo. precisamos querer.

domingo, 4 de dezembro de 2011

testemunha

o que a testemunha vê é tão horrível que ela não consegue contar; o que ela vê, quem ela vê, já não está mais aí para ajudá-la a contar e a lembrar. além do mais, ninguém vê nem viu o que viu a testemunha. ela está só. é daí que paul celan cria o verso: "ninguém/ dá testemunho/ sobre a testemunha".

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

mistério

em budapeste, eu entrava em todas as livrarias que via pela rua (e eram muitas) e perguntava: você tem algum livro sobre os mistérios da língua húngara? sempre achei que fosse senso comum que o húngaro é misterioso, já que ele praticamente não tem parentesco com nenhuma outra língua da europa, já que guimarães rosa dizia que quem fala húngaro tem pacto com o demônio e já que ela é praticamente toda proparoxítona. mas ninguém sabia nada de mistério nenhum e os mais enérgicos se ofendiam e diziam que não, que a língua húngara não tem nada de mistério e que é claro que ela tem parentesco muito próximos: com o finlandês e com o lapão.