terça-feira, 31 de agosto de 2010

pão

aprendi que a etimologia de lorde vem de hlafweard e significa "o senhor do filão de pão", daí também a palavra loaf, pedaço de pão, em inglês. lord, ainda em inglês, é uma das formas de referência ao próprio deus, como entoam vários hinos gospel e a canção de janis joplin: "oh, lord, won't you buy me, a mercedes benz", cuja tradução poderia ser: "oh, senhor do filão de pão, não dá pra você me comprar um mercedes benz?". fico imaginando os ricos lordes medievais, ou anteriores até, todos agarrados a seus filões de pão. trocaram-se os filões, mas a verdade é que até hoje os lordes estão agarrados a seus míseros pães.

domingo, 29 de agosto de 2010

sim

quando a gente quer muito que alguma coisa dê certo, é preciso, sim, como todos dizem: paciência, perseverança, determinação. mas, acima de tudo, uma coisa é indispensável: distração.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

ser

anaximandro, refletindo sobre o sentido da existência, conclui que o melhor seria não ser, já que o homem tem direito a ser, mas morre, o que tornaria a própria vida um paradoxo. bartleby, dois mil e oitocentos anos mais tarde, responderia eternamente a seu chefe, que lhe pedia uma tarefa: prefiro não fazê-lo. bartleby, que já é um enigma de rebeldia e autonomia na estranha forma de uma recusa solitária ao mundo do trabalho, fica ainda mais potente quando carregado com esse precursor pré-socrático e poderia então responder: desculpe, senhor, mas o melhor seria não ser.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

mulheres

um grupo de mulheres é como uma cadeia de montanhas e, ao mesmo tempo, uma sucessão de ondas de tamanho médio. nossos corpos juntos são fortes, quase inacessíveis e percebe-se que, por trás e no meio deles, escondem-se outras terras e línguas como também pequenos insetos que cavam buracos fundos e plantas de espécies nunca exploradas. mas somos também ondas, móveis e leves, avançando e recuando, trazendo mais conchas e moluscos para a praia, que, esta sim, são os homens que se estendem, extensos e parados, a nos aguardar.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

nomes

os ostrogodos magiares, a quem eu respeito muito, e que falam uma língua que, de acordo com guimarães rosa, só fala quem tem parte com o demo, me enviaram lá do fundo do tempo e das planícies húngaras, duas pessoas que eu mal conheço, mas com quem me sinto prontamente identificada: adriana komives e veronika paulics. como gosto de ouvir esses nomes que terminam em s, precedidos de consoantes cujas combinações são estranhas ao português. como gosto da letra k nesses nomes, que os torna imediatamente antigos, ou mais que antigos, ancestrais. pessoas com esses nomes estão aí para tudo, haja o que houver, e lutariam tranquilamente contra os godos nórdicos numa batalha de drakkars. agradeço a este blog, aos ostrogodos, aos nomes das minhas amigas e a elas, por levarem a força de seus nomes para sua vida, para o mundo e, como um acaso destinado, também para mim.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

consoante

torta é de comer; truta também; trator é de andar; trato é de cumprir; rota é de seguir; tártaro é de temer; torta também é de desviar; ator é de imitar; rato é de assustar; tiritar é de tremer; treta é de enganar; rito é de repetir; arte é de brincar; trote é de pular; reto é de desentortar; tora é de pesar; toar é de cantar; irritar é de brigar e já estou me afastando da brincadeira porque não lembro de outras palavras com t e r, que, juntas, formam um dos melhores encontros consonantais da língua portuguesa.

sábado, 21 de agosto de 2010

dualidade

onde, quando e por que deus estiver, ele se alegra em saber que existe um homem que é padre, mora no grajaú, em são paulo, acorda às quatro horas da manhã, pega o trem às cinco e cinquenta, vai até a estação usp, pega o ônibus até a estação vila madalena do metrô, vai até a estação sumaré e anda a pé até a puc, na rua monte alegre, onde chega antes das nove para assistir minha aula e me ensina a diferença entre dualidade e dualismo, e por que deve se fazer uma leitura alegórica sobre o fato de eva ter nascido da costela de adão.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

piada

quando eu era bem pequena, meu pai me punha para dormir quase todas as noites. ele se deitava ao meu lado e eu sempre pedia para ele contar a mesma piada. daí ele contava: "isaac e jacob eram irmãos e estava muito frio. jacob pediu para isaac: isaac, feche a janela, está muito frio lá fora. e isaac respondia: e se eu fechar a janela, vai ficar mais quente lá fora?" ele contava e nós sempre ríamos como se fosse a primeira vez.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

machado

às vezes ouço o som de uma palavra como ax, que é machado em inglês e tenho a sensação de estar diante não de um significado, mas da origem mesma da língua. daí penso em acha, que em português é um monte de lenha; em eixo, que em inglês é axis; na letra h, que é em espanhol é ache; no próprio desenho do machado que lembra uma letra, e que, de tão necessário e original, deve ter inspirado os primeiros inventores das letras e pictogramas; penso na letra xis e na própria palavra ax. como é possível que haja uma coincidência tão grande entre um objeto e o som que coube a ele? e por que só em inglês? por que não temos direito, nós, em português, a dizer axa para o machado?

domingo, 15 de agosto de 2010

nota

só outro dia aprendi que blue note é a nota triste, associação que eu nunca tinha feito antes. me contaram que essa nota é uma herança das escalas musicais entoadas pelos africanos em suas canções de trabalho. assim, numa melodia diatônica tradicional do ocidente, a nota triste soa como uma nota inesperada na linha melódica, uma terça, uma quinta, ou uma sétima mais para baixo. quando o ouvinte espera um intervalo maior, vem esse intervalo menor e é essa diminuição do tempo entre duas notas que é triste. a tristeza, ou melhor, a tristeza azul, é a diminuição do intervalo esperado.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

chopin

cada nota do noturno opus nove número dois de chopin soa como uma possibilidade inteira, a terra inteira se curvando na direção do sol, o mar obedecendo ao vento, ou somente um palito de fósforos riscando o fogo. as notas seguem umas às outras, mas é como se não precisasse; como se cada uma delas, mesmo nas sequências mais rápidas, existisse sozinha e a outra só viesse para lhe fazer companhia. a melodia bate diretamente no peito e posso sentir meu coração e pulmão mais firmes e prontos para a vida.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

ou

era um homem chamado flavio, ou um acento circunflexo na letra errada, ou um ponto de ônibus vazio, ou os braços cruzados de uma mulher muito gorda, ou as rugas nos cantos dos olhos de uma senhora que podia ser minha mãe, ou o ferrinho de prender pão solto no chão da cozinha, ou o sinal amarelo piscando sem parar numa esquina de pinheiros, ou um exercício de ginástica mal feito, ou um sonho que perambulava em busca de alguém que o sonhara, ou uma menina bonita de saia roxa, ou a meia-calça brilhante de outra menina, ou a lâmpada pequena num fiário de lâmpadas maiores, ou o paralelepípedo quebrado numa rua antiga do butantã, ou a fita de vhs numa vídeolocadora, ou um pedaço da meia soquete que estava um pouco desfiado, ou a alça meio arrebentada de uma mala verde, ou a prega de um vestido bonito, ou uma mosca dentro de uma teia de aranha?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

corredeira

o david e eu decidimos fazer um rafting no rio jordão. eu estava emocionada por estar no mesmo lugar onde jesus foi batizado e o david não estava nem aí. o rafting foi, aos poucos, se revelando como um programa familiar demais para o nosso desejo de aventura. era liso, não tinha nem uma única corredeira. o barco só ia indo. do nada, resolvemos então começar a cantar músicas dos beatles. i wanna hold your hand; help; yesterday; norwegian wood; eleanor rigby e, depois, cassia eller: quando o segundo sol chegaaaaar, para realinhar as órbitas dos planetas. gritávamos no rio jordão. foi muito melhor que corredeiras.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

fechadura

uma fechadura tem vários buracos. uma pessoa tem todas as chaves para abrir esta grande fechadura. mas ela não consegue enfiar todas as chaves nos buracos correspondentes de uma só vez. ela tenta então colocar uma de cada vez. mas quando ela acerta uma, a outra se trava, porque a fechadura só aceita que todas as chaves sejam colocadas simultaneamente. a pessoa estuda, durante muito tempo, as coincidências entre os dentes das chaves e os orifícios de cada entrada. mas não consegue segurar tantas chaves nas posições corretas de uma só vez. cria então um mecanismo de suspensão das chaves nas posições certas, insere-as e coloca-as todas em suas entradas correspondentes ao mesmo tempo. a porta se abre, mas já se passou muito tempo para que a função cabível fosse cumprida.






torre

não tive acesso à torre. os infinitos andares subterrâneos e circulares, por onde andavam gaiolas de aço gigantes, tinham catracas, controles automáticos, senhas e cartões que eu não possuía. precisava falar com auto-falantes, me identificar, me credenciar e a cada andar a espécie de visitante era diferente. pedestre? funcionário? carona amiga? idoso? cadeirante? visitante? trabalho temporário? os controladores diziam, através de suas caixas falantes, que eu era a mesma. a mesma se encontra no g2. a mesma está se encaminhando para o g3. a mesma não está credenciada. quando saí de minha pequena gaiola, decorei o número e a letra: c9. fui me dirigindo à torre que várias placas enormes anunciavam: acesso à torre, acesso à torre, acesso à torre. subi sete escadas rolantes, perguntei muitas vezes onde ficava o auditório, recebi um crachá e cheguei ao que imaginava ser a torre. lá, uma pobre mulher me esperava aos berros. eu estava muito atrasada e já haviam encontrado uma outra pessoa para me substituir. fiquei parada olhando os estudantes chineses sorridentes passando para entrar na torre. fui enviada de volta ao c9 no g3, que, na verdade, era b9 e eu estava bloqueando outra gaiola. seria satisfatório, o homem falou, que a mesma se retirasse. a mesma se retirou. a mesma não quer ter acesso à torre.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

vírgula

a palavra vírgula é feia, mas muito orgulhosa de si, o que a torna subitamente bonita. a proparoxítona, misturada ao r e ao g a tornam gorda, deslocada. mas é justamente esta combinação esdrúxula que a faz parecer assumida em seu som estranho e em sua função essencial na língua. como uma maçaneta ou uma dobradiça que sabem que não são porta nem janela, mas que, sem elas, portas e janelas não existiriam. a vírgula é um cotovelo da língua.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

contra

nunca, por mais que me expliquem minuciosamente, consigo entender a diferença aparentemente óbvia entre contra a luz e a favor da luz. um dia desses, de repente, me dei conta de uma possível explicação para esta teimosia em não aprender. uma vez, com cerca de uns oito anos, dormia num acampamento, num galpão onde havia centenas de beliches. acordei no meio da noite com vontade de fazer xixi. minha prima, que sempre era mais esperta do que eu, dormia na cama de cima. desesperada, eu a acordei e perguntei: suely, onde fica o banheiro? ela disse: conta sete janelas. eu ouvi: contra sete janelas. fiquei pensando, aflita, "contra sete janelas?" o que será isso? já tinha ouvido adultos usando esta palavra no sentido prepositivo, e achei que deveria saber, mas fiquei com vergonha de perguntar o que seria contra sete janelas. fiz xixi na calça e para sempre fiquei com medo da preposição contra.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

carlota

o seu madruga disse que meu carro está sem carlota. agora eu quero uma carlota para o meu carro, mas não o tempo inteiro. ela iria me contar as novidades sobre minhas primas, as notícias menos importantes do jornal e iria cantar músicas antigas, talvez até árias alemãs do século dezenove. mas quando ela começasse a falar demais, e eu quisesse ficar sozinha, daí botava ela calada de volta na roda.