sábado, 30 de junho de 2012

sucesso

algo que pode simplificar muito a histeria do sucesso é saber que a palavra sucesso, assim como evento e ocorrência, é sinônimo de acontecimento. o bom sucesso, portanto, é não mais (e isso não é pouco) do que deixar acontecer.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

conjunção

em literatura, não suporto conjunções. como elas exercem descaradamente a função de encadear pensamentos lógicos, elas sempre acabam se tornando muletas, atalhos para facilitar um caminho que, dito de outra forma, seria mais belo. por exemplo: "conforme o cartaz, a casa estava à venda". a palavra "conforme" introduz o mundo dos formulários na narrativa e corta o caminho concreto, aludindo a uma conjectura. conforme, na verdade, não é nada. não é muito melhor, no lugar dessa frase terrível, dizer algo como: "eu queria comprar aquele sobrado"? e no lugar de "embora cansada, ela foi à festa", não é melhor dizer "ela foi a festa morta de cansaço"? afinal, o que é embora?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

diálogo

num caderno de anotações antigas, encontrei a transcrição de um diálogo de augusto monterroso, autor de quem gosto muito: -do you? -very. é estranho,mas estava lendo em inglês um livro de um autor espanhol. este diálogo fabuloso me parece intraduzível para o espanhol ou para o português e quero levá-lo comigo no bolso e usá-lo sempre. "do you" é uma espécie de "você faz?", "você é?", "você quer?", "você tem?" e "very" - que significa muito e verdadeiramente - é sem dúvida a melhor resposta para todas essas perguntas.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

vírgula

ouço uma palavra chegando. ela não bate à porta, não avisa a que veio, nem por onde andou. ela aparece, senta-se e me olha. ela fala: sou a vírgula. eu pergunto: o que você quer dizer? ela diz que não quer dizer nada. ela só quer água e pão com manteiga, porque andou muito, está cansada. eu a recebo, deixo-a dormir e a coloco ao lado da palavra urso, que tinha chegado mais cedo. elas ficam bem assim, uma ao lado da outra. mais tarde, quando elas estiverem acordadas e mais bem dispostas, vou convidá-las para ver televisão.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

tradução

no limite, por mais que se possa transmitir o mesmo significado em várias línguas diferentes, todas as palavras são intraduzíveis. daí a melancolia inevitável do tradutor, cujo trabalho é nada menos que o impossível. uma palavra como nascer, por exemplo, como traduzi-la, sem perturbação, para i was born? do "ser carregado" passivamente para o verbo plenamente ativo e sonoro de "nascer"? e tchau para au revoir, cala a boca para shut up, ser e estar para to be e gente para people? mas sem dúvida a melancolia do tradutor deve se transformar em depressão profunda quando ele é forçado, sem direito a protesto, a traduzir cocorocó por cock-a-doodle-do.

domingo, 17 de junho de 2012

concretude

todas as palavras que hoje são abstratas, um dia tiveram origem concreta. teoria é assistir a torneios esportivos; especulação é observação das estrelas; hermenêutica é a arte de entregar mensagens; explicar é desfazer dobras; ideia vem de enxergar; razão é divisão; angústia é passagem estreita e, como essas, milhares de outras. é por isso que sempre digo que a poesia é a linguagem mais concreta que existe e não, como muitos pensam, a mais abstrata. porque a poesia é a linguagem que acede verticalmente à natureza das palavras e, por isso, ler poesia é como pegar, cheirar, ver e ouvir as coisas em seu estado de maior imanência.

terça-feira, 12 de junho de 2012

esquecimento

quanto mais vivo, escrevo, leio e pesquiso, mais tenho a sensação de que aquilo que se esquece é mais importante, para o indivíduo e para a coletividade, do que aquilo que se lembra. quando o que se esqueceu ressurge, por esforço mnemônico, por documentos buscados ou casualmente surgidos, por atos falhos ou por acaso simplesmente, revela-se mais sobre o presente do que tudo aquilo que dizemos, ou que nos esforçamos por lembrar.a psicanálise já tinha dito isso e explica o fenômeno com termos como recalque e repressão. mas, para além (ou aquém) disso, no plano linguístico e existencial, sinto (mais do que penso) que a memória é um depositário de esquecimentos, mais do que de lembranças. e que é no que se esquece que estão os cadinhos estalactíticos da poesia.

sábado, 9 de junho de 2012

gaveta

giacometti disse que poderia ficar eternamente pintando uma única cadeira, porque qualquer objeto é infinito e irretratável. o mesmo vale para a literatura: é possível escrever sobre uma maçaneta, um pelo, uma gaveta, infindavelmente. e o que é pior (ou melhor): nunca é possível encontrar a palavra certa para se dizer qualquer coisa, nem mesmo gaveta para uma gaveta. cada palavra que se usa pode ser sempre substituída por outra melhor.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

choro

não sei se é a aproximação lenta, mas certa, da velhice; se é o outono; se é a ideia de que os filhos inevitavelmente partem; se é a mesa posta, a casa arrumada; se são a segurança e insegurança acumuladas; se é a torta de tâmaras que comi faz três meses, mas tenho chorado como o diabo, por qualquer coisa que nem lembra alguma emoção. ontem, só de ver o luis tatit caminhando pela rua, carregando sua mala de professor, comecei a chorar. mas, pensando bem, existe algo mais emocionante do que uma pessoa tão linda, com a música brasileira dentro da mala, caminhando na rua numa noite de chuva?

terça-feira, 5 de junho de 2012

erros

erros de português que adoro cometer: colocar alguma coisa "de assim"; isso é só "entre eu e você"; vou assistir "o" jogo; quero ir "no" banheiro; prefiro isso "do que" aquilo; o peixe tem "espinho" e o melhor de todos, que deveria ser considerado correto, em nome do amor: "fica comigo".

sábado, 2 de junho de 2012

amor

você não se parece nem um pouco com um luar branco sob uma nuvem acinzentada, ou um jaguar correndo na selva, um tronco perdido no monte, uma onda se aproximando da praia, uma folha em branco esperando ser preenchida, um perfume de malva antigo, uma brisa leve que entra pela janela, uma chama pequena que sobrou,os olhos espertos de um gato. você não se parece mesmo com nada disso. você parece mais um sapato.