segunda-feira, 31 de agosto de 2009

discussão

nós discutimos. fiquei brava e ele também. no dia seguinte, pela manhã, me arrependi. saindo do supermercado, comprei um vasinho de flores amarelas pra dar pra ele. voltando da veterinária, ele comprou um vasinho de flores amarelas pra dar pra mim.

sábado, 29 de agosto de 2009

flor

depois de uns seis anos, a primavera do quintal de casa finalmente floriu. primeiro eram pequenos botões lilases na ponta das folhas. como se a própria folha se transformasse em flor. e agora, como que da noite para o dia, ela floresceu. o tempo foi trabalhando precisamente para a produção de uma coisa súbita, que parece ter vindo assim, do nada. essa mistura de lentidão e engenharia velada com a surpresa cabal de uma flor, ainda por cima em nosso quintal, dá uma alegria que nem sei.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

televisão

poucas coisas dão melhor (e pior) a noção de que muito tempo passou, do que ver o guto, filho do moacyr franco, na televisão. olhando para ele, olheiras fundas, calvo, bem mais velho do que era o moacyr franco quando eu era pequena, refiz um caminho súbito que foi da minha televisão pequena cor de laranja até minhas próprias olheiras atuais. eu adorava o guto e o mano, sonhava com eles e achava que eles viriam me buscar. gostava da música que o moacyr franco cantava sobre o garrincha: "sua ilusão entra em campo no estádio vazio, uma torcida de sonhos aplaude o talvez". brincava com minha prima no dial do rádio gigante da casa dela, embutido num armário de jacarandá. cada estação era um país diferente e sempre tinha um moacyr franco: um francês, um japonês, um americano. guto, você bem que podia ter vindo me buscar.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

comida

em mil novecentos e quarenta e quatro, quando já se anunciava ao longe a derrocada dos alemães, marguerite duras fazia parte da resistência francesa, seu chefe era françois mitterrand e seu marido havia sido capturado pela gestapo. ela, por uma estranha espécie de solidariedade, mas também por total impossibilidade, quase não comia e estava magra como um deportado. assustadoramente, um oficial nazista com veleidades artísticas se encantou por ela e a convidava para sair diariamente. preocupava-se com seu estado de saúde e a levava a restaurantes clandestinos onde se servia carne fresca e abundante, vinhos, batatas, leite. ela recusava tudo ou, para não levantar suspeitas, levava para casa e, ao chegar lá, jogava tudo no esgoto. me pergunto, com muitas dúvidas, se conseguiria fazer o mesmo. é impossível saber, mas tenho impressão de que não o faria e tenho raiva de mim por isso. sinto-me forte o suficiente para enfrentar muitas dificuldades e ousada para desafiar muitas coisas. mas aqui, empaco. a comida e sua carência, acho, eram o sinônimo da guerra. quem conseguiu resistir a ela, podia, como marguerite duras fez com orgulho, matar um nazista.

sábado, 22 de agosto de 2009

oração

que sempre, sempre, eu possa receber mensagens como essa, que recebi hoje da joaninha. bolo de uvas pretas (santa isabel). um quilo de uvas pretas lavadas e secas (será melhor um pouquinho mais); uma colher e meia de óleo; cento e cinquenta gramas de manteiga; pouco menos de duzentos e cinquenta gramas de farinha de trigo; duzentos e cinquenta gramas de açúcar; três gemas uma a uma; raspas de limão; três claras em neve. usar forma de aro, de abrir. colocar toda a massa na forma. depois colocar toda a uva por cima, sem mexer. a uva desce e a massa sobe. a uva santa isabel frutifica entre fins de janeiro, fevereiro e começo de março.





sexta-feira, 21 de agosto de 2009

lista

a burrice pragmática sempre foi, para mim, um motivo de orgulho. uma vaidade às avessas, uma espécie de teimosia arrogante em não compreender nem participar de fichas, tabelas, listas, sistemas. mas tenho recebido a vingança lenta das listas, que se abateram com ferocidade esperta sobre mim e isso me fez perceber que a recusa prepotente em ceder à organização é que é burrice. ou bem somos inocentemente canhotos ou bem participamos minimamente do mundo. empunhar o canhotismo como uma bandeira é uma maneira trocada e fraca de brigar. e o que é pior, com consequências ruins somente para o empunhador burro da bandeira canhota.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

exemplo

alguém conhece versos mais perfeitos do que "se fizer bom tempo amanhã, eu vou. mas, se por exemplo chover, não vou"? e o "por exemplo" não faz toda a diferença?

domingo, 16 de agosto de 2009

ônibus

no ônibus, em meio a um grupo grande de corintianos que batiam no teto, batucavam e cantavam hinos da fiel, eu me continha nervosa, porque queria e não queria participar. ficava olhando curiosa, mas desviava o olhar quando coincidia com o deles. eu ia ao cinema e eles, claro, ao jogo. fiquei com um pouco de vergonha de ir ao cinema, em meio àquela manifestação feliz de iminência do jogo, à qual nenhum cinema se compara. quando chegava perto do meu ponto, um torcedor me perguntou: você é corintiana? respondi que sim. imediatamente, eles, juntos, começaram a cantar: uéu, uéu, uéu, tiazinha é da fiel! pronto, me puseram no meu lugar bem rápido e eu pude ir ao cinema tranquila.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

fundo

a nina, minha gata, está novamente doente. ela me olha crédula do fundo dos seus olhos grandes e me aceita. a mim, aos remédios, aos exames, aos traslados. sua elegância permite um miado baixo. só isso. eu não, nina. tenho vontade de chorar aos berros porque você adoece e tua ignorância da doença só faz aumentar minha sensação de impotência. às pessoas, que sabem de si e minimamente compreendem que estão doentes, permite-se que morram. mas como permitir que alguém que nada sabe, nada julga, nada pede, também vá embora? a morte exige um pouco de lógica. nina, me ajude.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

mim

a senhora muito elegante, que recentemente se mudou do rio de janeiro para são paulo e que aqui conhece poucas pessoas e lugares, disse assim para mim: sou apaixonada por mim mesma e sou completamente correspondida! tá aí, matou a pau.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

cinema

antonio candido conta que, por volta de mil novecentos e vinte e seis, ele e um dos dois irmãos eram apaixonados por cinema, que passava uma vez por mês na cidadezinha no interior de minas onde ele morava. ele e um primo também obcecado pelos filmes, colecionavam revistas sobre cinema e tinham um hábito lindo: recortar todas as cenas que conseguissem de um mesmo filme, fazer tiras de papel almaço colado e colar, nestas tiras, as cenas do filme escolhido na sequência certa, entremeando com aquelas telinhas enfeitadas com os dizeres dos atores, que eles mesmos se esmeravam em escrever com capricho. com o máximo de cenas acumuladas na ordem correta, eles pregavam o papel em suportes de madeira e enrolavam como um pergaminho. diante da plateia curiosa e maravilhada - os outros dois irmãos - eles desenrolavam as cenas como se fossem elas também um filminho privado. depois que surgiu o cinema falado, antonio candido conta que perdeu o encanto tão grande que sentia pelo cinema. onde estão estes filminhos, onde está esta plateia de dois irmãos, onde estãos as letras bonitas das telas entre as cenas? por que não dá para ter tudo?

sábado, 8 de agosto de 2009

tempo

meu pai gostava muito da elis regina. quando ela morreu, de forma inesperada e trágica, ele não se conformou. de repente, do nada, no meio de um silêncio na sala, ele dizia, com o seu sotaque lindo: elis regina móreu. e assim ficou. mesmo cinco anos depois da morte dela, quando baixava um silêncio e ninguém tinha o que dizer, por motivos bobos ou graves, ele dizia: elis regina móreu. nós ríamos muito. mas para ele era a síntese lapidar do tempo que passa e não poupa nem a nós nem à elis regina. hoje meu pai já não está mais aqui, muitos outros também não estão e, muitas vezes, quando baixa um silêncio e eu sinto o tempo passando bem rente de mim, até ouvindo seu barulhinho, me pego dizendo: elis regina móreu.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

segredo (para o paulo neves)

eu acho que descobri teu segredo. você é um acompanhador das coisas. por exemplo, surge uma caneta. você vai até ela e diz: olá, caneta, bem-vinda à vida. vou te mostrar as coisas. então você acompanha a caneta por todas as mãos e lugares pelos quais ela passa. quando chega o momento de inutilizá-la, você também a acompanha e diz: até logo, caneta. que bom que você esteve por aqui. e assim você faz com as coisas, as canções, os poemas e as pessoas. eu não adivinhei o teu segredo, paulo, não adivinhei?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

escambo

os minutos que vêm logo depois de acordar, ainda entre o sono e a vigília, são cheios de possibilidades que, assim que a vigília predomina, soam absurdos. durante esses minutos tenho certeza de que vou publicar um livro único sobre o qual ninguém nunca tinha pensado e que vai fazer um sucesso internacional; encontro uma maneira de conseguir visitar minha mãe todos os dias; descubro um jeito de fazer escambo com os melhores restaurantes da cidade: redijo os cardápios e, em troca, eles me oferecem jantares de graça por um ano. não, mais de um ano, quem sabe para sempre. essa brecha de luz embaçada, esse tempo não cronológico, não linear, entre a entrega ao outro e a posse de si mesmo é um momento privilegiado, que eu gostaria de agarrar com os dedos e levar comigo na bolsa. nos momentos chatos do dia, eu o tiraria de lá, vestiria como se fossem óculos e veria o mundo com cores esfumaçadas, brilhantes, engraçadas, do jeito que eu quisesse.

domingo, 2 de agosto de 2009

taxi

quando voltamos ao hotel de varsóvia, o kanonia, à meia-noite e meia, a leda descobriu que tinha perdido o celular. liguei para o número dela e atendeu um senhor de voz grossa: álo! álo! speak english? no, no anglutski. polska. telefon? da, telefon. ia jezuitska ulitsa (rua jesuitska). daí só entendi o cara dizer, bem bravo, que não levaria o telefone na rua jesuitzka coisa nenhuma. fiquei tentando falar o polonês que não falo. du, táxi? da, supertáxi. ele era o spupertáxi. levei correndo o telefone para a recepcionista do hotel, que era praticamente uma espelunca, e ela conversou com o motorista do supertáxi. disse que ele não viria trazer o celular, que estava próximo dali e que devolveria o celular a um custo de vinte zlotys, contanto que nós fôssemos buscar. eu já estava de pijamas. coloquei um casaco por cima do pijama, as botas e fomos, numa neve que chegava até os nossos joelhos, atravessar a cidade antiga para encontrar o motorista do supertáxi. chegamos, pagamos e ele nos devolveu o celular sem falar nem uma palavra. voltamos rindo, chorando mesmo de rir, molhadas e inventamos o supertaxi, um super-herói que resgata celulares a vinte zlotys e que só tinha entrado em ação uma única vez, talvez para nunca mais.