terça-feira, 30 de junho de 2009

dinheiro

um arranjo mixuruca de flores no supermercado santa maria custa duzentos e vinte reais. paguei o seguro saúde atrasado e a multa é de dez por cento, ou seja, cento e cinquenta reais. o dinheiro hiper sobrefaturado deve circular por meandros subterrâneos das cidades, como salmões medrosos correndo contra a correnteza do esgoto, saltando pinguelas, canos, buracos e indo parar, como notas obedientes, solitárias, nos bolsos de executivos comilões. que triste um pequeno arranjo de flores custar duzentos e vinte reais.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

menina

a menina de dezesseis anos falou de música, de cinema e de sexo. nós três tínhamos todas mais de quarenta anos. ficamos escutando a menina e rimos tanto até chorar. ela falava com uma desenvoltura que nós perdemos e talvez nunca tenhamos tido. não havia vergonha ou moralidade envolvida. éramos quatro mulheres alegres instantaneamente amigas pelo brilho dos olhos da menina. não quisemos ter dezesseis anos, não sentimos inveja. ela fez com que cada uma de nós quisessse ser exatamente o que é. uma menor, outra média, outra maior; uma com quarenta e quatro, outra com quarenta e sete e outra com cinquenta e dois. a menina linda, de tão linda, pos cada coisa em seu lugar, cada uma na alegria solitária e coletiva de ser só o que é e de estar junto de quem gosta.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

pai

meu pai dizia ne ima niko kutchi, que é não tem ninguém em casa, em iugoslavo. dizia nie lepo, que é não está bonito. dizia laje, que é mentira. dizia otchen dobro, que é muito bom. goran bregovic, o mágico cigano de uma música que vem lá de uma floresta eslava inexistente para transformar o mundo em alegria, diz niko neznam, ninguém sabe. ninguém sabe nada mesmo, nem meu pai, nem goran bregovic, nem eu. ninguém sabe nada e essa é a melhor coisa que pode haver.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

carroça

a caminho da etapa final de um concurso importante, vi uma carroça, conduzida por um pangaré velhinho, despelado e cabisbaixo. na boléia ia uma família: o pai, a mãe - de lenço na cabeça - e seis crianças bem pequenas. a mãe ainda ajudava uma delas a subir para todos poderem partir. as crianças eram bem pequenas. todas bonitas, de cabelos encaracolados. era como se vidas secas tivesse aterrissado na vila madalena. a simultaneidade desses acontecimentos, meu concurso e a família na carroça, foi como um atrito entre dois pólos elétricos opostos, provocando um choque no circuito monotemático do meu cérebro: concurso, concurso, concurso. a carroça abriu uma vala no concurso e fez com que tudo se alargasse, se estreitasse, fez um buraco em meu caminho reto. e olha, agora o concurso nem faz mais tanta diferença.

terça-feira, 23 de junho de 2009

dedo

ficção vem de fingere que, em latim, significa moldar, dar forma. daí também finger, dedo, que era o que dava forma à matéria e a tranformava em representação, mentira, ficção. assim, ficção e dedo mantêm uma relação secreta, linguística e cabe a nós, que nos habituamos a viver não nos bastidores, mas na superfície da língua, redescobrir sua antiga coincidência. o dedo, extensão instrumental e simbólica do corpo, fazedor de instrumentos e ferramentas, responsável pelo aspecto funcional da humanidade, é também o melhor mediador para plantarmos nossos poemas no mundo. o dedo é um pré-pente, pré-martelo, pré-caneta: habita a fonte física da ficção e conversa diretamente com ela. dedo, escuta os meus poemas e faz alguns pra mim?

domingo, 21 de junho de 2009

letra

a leda está lendo a história sem fim para a marina, que tem sete anos. a marina perguntou: leda, de que tamanho você acha que são os personagens do livro? a leda disse: do tamanho de gente normal. a marina disse achar que eles são pequenininhos. por quê? a leda perguntou. porque se não, eles não caberiam no livro. ao mesmo tempo em que a marina imagina as criaturas fantásticas de um reino desconhecido, ela também pensa que os personagens são feitos de letrinhas e que estão lá, dentro delas. como uma penetração profunda na intimidade das letras, enxergando infinitamente o mundo de onde elas vêm e para onde elas vão e nos levam. a história não horizontal nem linear, mas vertical e vertiginosa das letras sem fim.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

missa

fui fazer uma inalação no pronto-socorro. na minha frente, um rapaz de camisa vermelha, celular na mão, cantarolava sem parar, em voz bem alta, uma canção em uma língua desconhecida. para mim soava como alguma derivação do russo. ele tirava sangue lentamente e comentava também os movimentos da seringa e dos fios. comentava para ninguém, só para si mesmo. nós todos ali, naquela sala, inalando ar, reunidos, e o moço cantando. to rro li shat la kav nin tlo piiiis. os enfermeiros passando e perguntando: melhorou? de um a dez quanto você está sentindo de dor? quer levar o inalador para casa? não. tadinho do inalador. ninguém quer levar ele para casa. ao mesmo tempo me sentia a mais solitária das resfriadas, mas, também, senti fazer parte de uma comunhão de respiradores, embalada pela cantiga estranha. moço da cantiga estranha, você me salvou da burocracia da gripe e a transformou em uma missa russa.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

medo

o vigia que cuida da rua durante o dia, seu madruga, é medroso. ele tem medo da chuva, de ladrão, das pessoas, de doença. é desconfiado, rabugento e feio. meu cachorro, que é epiléptico, teve um pequeno ataque, e ele viu. ficou com medo. é perigoso? não. dá na gente? não. posso ficar perto dele? pode. mas tem certeza que eu posso? tenho, seu madruga. e, agora, toda vez que eu saio de casa, ele me pergunta as mesmas coisas, nessa ordem. talvez o seu madruga seja uma vítima do medo, não sei. mas penso que o medo, o medo o, é a pior mediação criada em conjunto pela natureza e pelo homem para se relacionar com o mundo. é uma linguagem triste, falsamente protetora. o medo é a máscara de uma pequen morte nos contaminando os dias.

terça-feira, 16 de junho de 2009

ora

num livro lindo de david grossman, until the end of the land, a personagem de nome também lindo, ora (que quer dizer luz em hebraico, mas luz no feminino, portanto alguma coisa como iluminada), conta que, quando pequenas, ela e sua amiga ada mantinham um almanaque de palavras protegidas. algumas palavras devem mesmo ser resguardadas do uso indevido, abusivo, vão, tacanho ou bobo. assim, pensei que também posso cuidar de palavras.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

sacada

por que será que hoje eu lembrei de uma moça que uma vez eu vi em uma sacada de um apartamento em barcelona, isso já faz bem uns dez anos? a memória funciona por ondas de sentidos e algum deles deve ter evocado essa lembrança, que aflorou assim, não convocada, até a superfície da consciência. moça de barcelona que eu nem vi direito, por que você veio hoje me chamar?

domingo, 14 de junho de 2009

navio

você vai me deixar recontar essa história linda que você me contou. a menina saiu da alemanha com dois, três anos. o pai, judeu, em 1938, sentia que uma guerra se aproximava. eles embarcaram num navio para vir para cá, e nesse mesmo navio viajava a seleção brasileira de futebol. a menina pequena viu, pela primeira vez, um negro, que veio brincar com ela. esse homem negro, que a espantou, era leônidas da silva. aos poucos, com a viagem longa, eles ficaram amigos. essa mulher cresceu aqui e, adulta, escreveu a biografia de iara iavelberg, uma moça também judia, que foi amante de lamarca. fiquei pensando o quanto o encontro da menina com o outro mundo, ainda no navio, não a fez interessar-se para sempre por essas colisões as mais poéticas que a vida pode nos proporcionar: a carícia do diferente num mundo que quer para sempre permanecer igual.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

caldo

olha, moço, foi muito bom você ter me dito que eu ainda dou um bom caldo. meio cruel e hiper realista, mas ainda assim, bom. agora, deixa eu te dizer uma coisa. tenho sete rugas de diferentes tamanhos e profundidades bem abaixo de cada olho. no direito mais do que no esquerdo. quando sorrio, despontam mais rugas nas laterais dos lábios, nas bordas do rosto e algumas na testa. resfrio com facilidade e, nesses casos, fungo. tenho só um pijama para o frio e um para o calor. erro muitas receitas e esqueço chaves, meias, lápis, contas e lugares onde guardei as fotografias. não sei muito bem distinguir a luz da sombra e faço enquadramentos tortos e com o dedo na frente. se não bastasse tudo isso, mancho o jornal com mamão e geléia. moço, a outra moça, a que ia mais para a frente, creio que dava um caldo melhor.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

selo

existe reconhecimento de firma por semelhança e reconhecimento de firma por autenticidade. por semelhança é quando não é a própria pessoa que leva algum documento com a sua assinatura para ser reconhecida. daí o escrivão reconhece que a assinatura é realmente parecida. por autenticidade é se a própria pessoa vai. então o escrivão reconhece não só que a assinatura é a mesma, como também que a pessoa é a própria pessoa. por semelhança, o reconhecimento de firma custa dois e noventa. por autenticidade, sete e oitenta. por que reconhecer que a pessoa é a própria pessoa custa mais caro do que reconhecer que a assinatura é parecida? penso que deveria custar menos, porque exige menos destreza e perícia investigativa. para reconhecer duas vezes que eu era eu mesma, gastei quinze e sessenta. no selo que o moço colou atestando minha identidade, tinha um errozinho que ele próprio percebeu e então ele passou cerca de dez minutos raspando o selinho com a unha para retirá-lo. eu fiquei olhando para ele. ele raspava aquele selo com tanta certeza! pode ser que esteja certo que só ele tenha a autoridade de atestar que eu seja mesmo eu.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

nariz

na quinta ou sexta série do ginásio, eu tinha um colega, que sentava logo atrás de mim, chamado ovadia saadia. para uma escola conservadora e de bairro, podia-se dizer que ele já era bem cosmopolita e com um sentido estético apurado, pois adorava filmes hollywoodianos dos anos 40 e cinema francês. tinha uma coleção de posteres raros e era, como todos, fanático pela brigitte bardot. ele dizia que me achava bonita e que, não sendo por meu nariz volumoso e torto, eu pudesse talvez passar por uma atriz francesa. ele ficava empurrando meu nariz para cima, tentando arrebitá-lo e ver como seria meu rosto assim, de nariz empinado. hoje ele continua se chamando ovadia saadia e é colunista social. sempre recebo e-mails com informações da sua coluna. ovadia, até hoje eu me olho no espelho de vez em quando, empino o nariz e fico olhando se eu poderia passar por uma atriz francesa.

terça-feira, 9 de junho de 2009

telefone

deitamos um ao lado do outro e começamos a ler juntos o primeiro capítulo de sobre amor e trevas, do amos oz. logo no início ele conta que, em jerusalem, na década de quarenta, a família toda se reunia mensalmente para ir até a farmácia mais próxima e fazer um telefonema para a outra metade da família que estava em tel-aviv. tudo isso era precedido por cartas, preparativos, rituais e, no dia combinado, todos se vestiam com capricho para ir até a farmácia fazer o telefonema. quando finalmente a ligação se completava, a conversa era sempre: como estão? alguma novidade? por aqui também não. vamos nos telefonar novamente no mês que vem, está bem? sem falta. e assim terminava a função e todos voltavam para casa. rimos tanto, com tanto carinho, que chegamos a chorar de rir. hoje não nos vestimos mais para fazer um telefonema, mas, por outro lado, rimos felizes e nostálgicos de lembrar desse tempo que não vivemos, o que não é mesma coisa, mas é muito bom também.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

definição

li três definições sensacionais feitas todas por milan kundera: a ternura é o medo que nos inspira a idade adulta; a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza; o poeta é um rapaz que sua mãe leva a exibir-se diante do mundo no qual ele não é capaz de entrar. acho as definições determinadas por uma ação bem mais eficientes do que as definições abstratas, sem personagens ou exemplos. por isso, gosto quando alguém responde a uma pergunta definidora, com a resposta: "é quando...". assim, vou inventar também uma definição ativa para um conceito abstrato: melancolia - encontro entre o capricho, a gratuidade, o tempo e o conhecimento. como sou abstrata, meu deus!

domingo, 7 de junho de 2009

mel

no site do museu do café, de santos, incidentalmente encontrei a receita do bolo de mel que eu tanto pensava em comer. bati quatro claras em neve e juntei com um copo de açúcar e quatro gemas durante muito tempo. juntei três quartos de copo de um mel muito bom, meio copo de café forte, meio copo de óleo de canola (eu não tinha óleo de milho em casa, mas achei que era a mesma coisa), trezentos e cinquenta gramas de farinha de trigo (que eu chutei que eram duas xícaras cheias), uma colher de essência de baunilha, uma xícara de uvas passas brancas, uma xícara de nozes picadas (eu coloco as nozes dentro de um saco plástico e trituro com o batedor de bife) e eu ainda acrescentei uns pedaços de tâmaras que o joão tinha trazido. ficou bem molhado, como eu queria e, comendo, lembrei do dono da farmácia paulistânia, que ficava na esquina da tocantins com a antônio coruja e onde uma vez eu ganhei um pentezinho de cabo de madrepérola.

sábado, 6 de junho de 2009

fundo

o editor perguntou se eu queria entrevistar o chico buarque. quero muito! é a coisa que eu mais quero! na entrevista, quatro jornalistas e eu. eles perguntavam se ele beijou a moça no fundo do mar, se ele sabia que ela era casada, se ele escrevia ao mesmo tempo que lia, se achava bom o lula. eu só ficava olhando. quase no final, eu perguntei: chico, você é triste? ele disse que triste, ele, não. enrubesci e me calei. puxa, que droga que o chico não é triste.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

nós

jogávamos buraco, as quatro. uma começou a cantar uma canção dos beatles e outras duas acompanharam. uma só ficava olhando e jogando muito bem. sempre foi a melhor jogadora. cantamos muito beatles e um pouco de rolling stones, nós três. fomos, assim, mais irmãs do que eu jamais me lembrava de ter sido algum dia. e ela, mais mãe.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

pequena

às vezes, forma-se uma película baça sobre a pupila, que, por sua vez, condensa-se em um líquido salino, que acaba escorrendo para baixo em forma de fio. pode-se passar a língua sobre o fiapo que se aproxima da boca, fazendo-se assim com que o líquido volte para dentro do corpo. sabe-se lá como ele voltará lá para cima, algum outro dia, e por quais razões. pode ser, entretanto, que ele nunca volte e que saia por outros caminhos. assim, uma tristeza pequena pode se transformar em suor.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

poro

por razões mais fortes do que minha vontade, precisei ficar bastante tempo escutando uma pessoa falar sobre a operação de retoque de lipoaspiração de sua prima. com todos os detalhes: sobre a operação, a preocupação da família, com quem os filhos iriam ficar, as dificuldades da gorda em questão. era a chatice em estado maciço, sem piedade nem brecha. como atravessar a chatice? onde encontrar uma fresta que nos permita escapar do retoque de uma lipoaspiração? por que ela não contém algum poro, algum caminho alternativo que seja?

terça-feira, 2 de junho de 2009

ping

numa loja de artigos esportivos, havia algumas mesas de ping-pong disponíveis. o david me chamou para uma partida. começamos e eu logo me dei conta de que a minha visão já não conseguia mais acompanhar direito os movimentos da bolinha. ficava oscilando os olhos entre o david, que tem um metro e noventa e seis e a bolinha, que tem cinco centímetros. eu o olhava, com dezessete anos, a mesma idade que eu tinha quando jogava muito ping-pong e à bolinha, que denunciava minha idade graúda. assim, jogava ping-pong de verdade e com meus olhos e memória também, que iam e vinham, do meu passado para o presente transformado naquele menino grande, e do presente de vista cansada para o passado daquela menina que ainda nem sabia de nada disso.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

paris

aprendi duas frases na aula de francês que já me fazem sentir totalmente habilitada a viver para sempre em paris, usar golas olímpicas, fumar gauloise e escrever sobre o nada: on m'a amérement reproché e je ne te le fais pas dire.