sexta-feira, 30 de abril de 2010

sonho

sonhei que lia um livro que tinha dois textos simultâneos. um, linear, cujo significado era dado pela sequência normal das palavras. outro, paralelo, cuja sucessão era dada pelas palavras alternadas. as palavras um, três, cinco, sete, nove e assim por diante. acho que o sonho é mesmo isso. a sequência alternada da sensação de linearidade da vigília. todas as noites lemos o texto paralelo que mal montamos durante os dias.

terça-feira, 27 de abril de 2010

guarda-chuva

hoje, o poeta eucanaã ferraz contou que manuel bandeira tinha um guarda-chuva, que carregava para todos os lados, que tinha sido de seu pai, e cujo nome era "irônico". lembrei imediatamente da piada contada por guimarães rosa: ao ser perguntado por que razão levava para toda parte um guarda-chuva todo furado, um homem respondeu: "é para o caso de não chover".

sábado, 24 de abril de 2010

vela

deus, que está no ar, que compõe o sopro, que sai da boca para apagar a vela, aumentar a chama, aliviar a dor: não faça nada, não te peço. seja isso e não apareça, nâo redima, não conceda. seja somente o ar que sai de mim, que infla o sopro e que apaga a vela.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

turíbulo

ontem me contaram esta história: nos anos oitenta, um grupo de teatro foi apresentar uma peça numa cidade do interior de são paulo. um assistente do grupo foi visitar, respeitosamente, dom braulino, o pároco da cidade, para lhe pedir emprestados seus turíbulos, que deveriam ser utilizados na apresentação. dom braulino, orgulhoso, emprestou os turíbulos, os incensórios e todos os paramentos. no dia da inauguração, estavam na plateia o pároco, o prefeito, o chefe da polícia e o público mais respeitável da cidade. abriram-se as cortinas e surgiu um pênis gigante, cercado dos turíbulos de dom braulino. mandaram imediatamente baixar as cortinas, levaram toda a trupe de teatro para a delegacia e dom braulino foi transferido de paróquia, para onde levou seus turíbulos, que não empresta nunca mais, para mais ninguém.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

pés

uma bola se formou, feita de pó, algumas meias usadas, ramos quebrados, fios carcomidos e paina. ela rolou pelo chão, até um menino vê-la, pegá-la e brincar com ela. daí em diante, as bolas cresceram, ganharam novos formatos, cores e tamanhos, texturas e funções e passaram a ocupar os pés e mãos de muitos e muitos meninos e meninas, que tratam delas muito bem e pensam que elas são como uma verdade metafísica. o que, na verdade, elas são.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

sinfonia

dizem que beethoven compôs a quinta ou a nona sinfonia, em função da tristeza de ter perdido um encontro com a mulher que amava (prometida ao seu irmão), por causa de uma carruagem capotada em seu caminho. atrasou-se ao encontro, ela pensou que ele não viria mais e partiu. fico pensando qual tristeza, quando há os celulares, seria capaz de, hoje, produzir uma nona sinfonia.

sábado, 17 de abril de 2010

banheiro

entrei no banheiro do avião tcheco. na hora de sair, a porta travou. fiquei tentando e não adiantava. minha irmã ficou preocupada com meu sumiço e foi falar com a aeromoça. ela veio, eu disse que não conseguia abrir e ela ficou tentando me ajudar. era impossível. veio toda a tripulação, tentaram tudo, e nada. o voo já se preparava para o pouso e é proibido pousar com alguém no banheiro. a aeromoça perguntava: "mas a senhora está bem?" eu estava ótima, até cantei. fiquei tranquilizando a aeromoça. era preciso pousar de qualquer jeito. o avião pousou, e eu lá dentro. chamaram o pessoal de terra, veio o mecânico e arrombou a porta do banheiro. talvez tenha sido burra. devia ter fingido um infarto para depois pedir indenização. eu só cantei e fiquei quieta. adorei ficar presa no banheiro do avião tcheco.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

fechadura

cheguei em nova iorque às onze e meia da noite, num inverno de rachar, e, no táxi, percebi que só tinha o nome da rua onde iria me hospedar, não o número do prédio. tinha também a chave da porta. o motorista não quis nem saber de me aguardar, nem de me levar até um telefone público, onde eu pudesse ligar para uma amiga que saberia me dizer o número. fui arrastando minha mala na neve até um telefone, liguei e ela não atendia. fui voltando para a rua e ainda parei alguém para pedir ajuda, mas a pessoa respondeu que não tinha trocado para me dar. voltei até a rua, deserta àquela hora da noite e comecei, arrastando a mala, a testar todas as portas de todos os prédios, dos dois lados da rua. depois de não mais do que vinte tentativas, uma porta abriu. era aquela. cinco anos mais tarde, eu defenderia meu mestrado com o título: "trouxeste a chave?". sim, esta eu sempre costumo levar. o problema é a fechadura.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

harpa

o paulo miranda e o omar khoury são duas pessoas que encaminham minha alma direto para a sua morada. fico com eles algumas horas, vejo que eles são como os anjos gabriel e azrael brigando, tirando um a harpa do outro, ocupando o melhor espaço na nuvem e falando:"foi pra portugal, perdeu o lugar!", e sei que estou com o melhor que alguém pode querer ser. daí minha alma fica restaurada e agradecida.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

dúvida

quando eu era pequena, tinha uma dúvida grave: se alguém me perguntasse "você não acha?" e eu respondesse "sim", então queria dizer que eu acho ou que eu não acho?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

trânsito

no trânsito das oito e meia da manhã, abriu uma clareira. nenhum carro à frente, atrás, nada. chovia uma chuva fina, boa. tocava uma canção de voz e violão simples no rádio. a menina passou com meia calça roxa, guarda-chuva meio estropiado, cabelos ruivos, saia de flores. de dentro do tempo, uma seta, um respingo do instantâneo saltou para fora. foi mesmo só um instante, mas que ele saltou, saltou.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

foto

como são lindas estas fotos do passado, em que olhamos nossos próprios olhos de antes com os de agora. ouvimos aqueles olhos dizendo que o futuro pouco importava, olhando para o presente com expressão de harmonia, ao mesmo tempo em que os olhos de agora sorriem com respeito, saudades e como que dizendo: "eu estou agora, aqui onde você não pensava que estaria. e posso vê-lo, a você (ou a mim mesmo), enquanto você não podia."

sábado, 3 de abril de 2010

fiscal

meu pai chegou ao brasil em mil novecentos e quarenta e nove sem falar uma só palavra de português, só com o curso primário e sem profissão. resolveu vender roupas de porta em porta. levava uma maleta e caminhava por bairros como o brás, a móoca, batia palmas e mostrava as mercadorias. depois do almoço, dormia embaixo de uma árvore. uma vez um fiscal o acordou e levou sua mala. juro que até hoje eu tenho vontade de pegar esse fiscal e dizer uma boas verdades para ele.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

gilberto

meu vizinho pipoqueiro era o melhor, e talvez o único amigo do gilberto, o guardador da casa da frente. o gilberto praticamente não dormia e mal comia. ficava andando pela rua o dia inteiro e, à noite, saía para beber. voltava descendo a rua, gritando, batendo palmas, brincando com seu adálio, fazendo locuções de jogos de futebol imaginários e berrando sem parar: "é nóis!". ontem ele foi encontrado morto na casa de uma sobrinha. tinha trinta e seis anos, quatro filhos e uma ex-mulher. o pipoqueiro foi ao enterro e contou que lá, o pai-de-santo que o gilberto frequentava, levou uma garrafa de pinga e colocou dentro do túmulo. o pipoqueiro disse: "se fosse com minha família, eu dava com a garrafa na fuça dele!". eu não. aprovei o pai-de-santo. o gilberto morreu acompanhado.