sexta-feira, 30 de outubro de 2015

filha

quando a leda nasceu eu pensei: vai, filha, cumprir a vida de uma mulher. não é fácil não, filha. você vai atravessar as cidades, as ruas, as esquinas e sempre haverá alguém te olhando e você vai correr e chorar e pedir e os outros vão te ajudar e às vezes ninguém vai te ajudar e você vai aprender a se defender e às vezes não vai aprender e eu vou estar onde for preciso para te ajudar, mas tenho medo de não poder estar. mas hoje, leda, tantas mulheres, e homens, vão caminhar juntos, porque hoje é o dia em que todas aquelas pessoas que não puderam estar juntas vão estar. e vamos nos olhar e vai ser bom olhar, porque não haverá esguelhas nem soslaios nem cunhas no nosso olhar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

sardinha

tenho problemas com sequências. coisas que começam, se desenvolvem e terminam. coisas com coisas. coisas que são causas de certas consequências e vice-versa. parágrafos com ideias principais. conclusões. e por quê? porque não conheço nada assim, nem na mais intensa e luminosa - ou obscura - imaginação. menos ainda na vida. na vida, e mais ainda no sonho, o tempo se espreme, se alastra, se comprime e se propaga. mas não segue em linha reta. nada continua como começou, nem mesmo começa antes de terminar. aliás, nada termina. não se pode, pelas consequências, determinar a causa e estas se proliferam de acordo com necessidades, desejos, medos e uma memória falha e que só faz, quanto mais o tempo passa, puxar a brasa para sua sardinha. ou a sardinha para sua brasa, nem sei.

sábado, 17 de outubro de 2015

pão

aleluia, aleluia, farinha na cuia, repetia o tradutor de guimarães rosa, incansavelmente, o dia inteiro, sem conseguir achar a equivalente em alemão. pudera, pois se para nenhuma palavra existe correspondência exata, ainda mais para isso. foi quando à noite, no banheiro, começaram a ouvir um murmúrio lento: hosana, hosana, brot is mana. e foi assim, com o sonho do pão transformado em maná, que fez-se o milagre da versão de uma língua para a outra. e como na língua das línguas, o homem nomeou as coisas com as palavras.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

tempo

por que escolhemos o verbo "passar" para o tempo? o que é passar? transcorrer, mudar, mover-se? nunca ninguém viu o tempo operar estas ações. somente vemos os seres e lugares sofrerem-nas. mas queremos que seja algo que opera, neles, as mudanças e, de alguma forma, ao atribuir tudo ao tempo, recusamo-nos a aceitar que somos nós que passamos, que estamos passando, vamos passar até não podermos mais dizer que está passando, porque passou. para o tempo, nossa invenção para sentir a morte - e, com ela, a vida - talvez possamos dizer que ele é. o quê, não sabemos.