quarta-feira, 28 de setembro de 2011

ator

ontem, em algum episódio perdido do seriado law and order svu, que eu gosto de assistir, tinha um advogado, que defendia o réu, acusado de estupro. ele era gordo, com cara de idiota e meio sujo, o paletó velho e a cara abatida. fiquei pensando nesse ator. deve ser um nova iorquino frustrado que, ao ser chamado para atuar no seriado, viu sua chance de voltar à cena teatral, de onde ele foi subtraído há muito tempo. vive num apartamento caindo aos pedaços que herdou da avó, no brooklin. é judeu e as únicas pessoas que o convidam para fazer algum trabalho no teatro são os membros de um clube judaico de velhinhos,sobreviventes de guerra. ele vai, de má vontade, mas resignado. quando acaba sua participação no episódio de law and order, depois de vários afagos dos colegas e até dos atores principais, ele volta ao seu apartamento do brooklin e percebe que nada mudou.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

si

escrever não é dar de si. é agarrar o fora. escrever é de fora, para fora,e por isso pode ser tão bom. de mim já basta eu.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

garimpo

hoje, enquanto esperava o sinal abrir, vi dois pedreiros fabricando aquele tipo de cimento pipocado que se vê em alguns muros da cidade. um deles segurava uma grande peneira na vertical, enquanto o outro catava o cimento de um carrinho e aplicava numa pá, para então salpicá-lo através da peneira, por onde ele passava para se alojar pipocado na parede do muro. e assim eles iam, um segurando a peneira e o outro salpicando, até completar o muro inteiro, que era enorme. um dos pedreiros olhou para mim. ele tinha um brinquinho em cada orelha. eles continuaram trabalhando e fizeram alguma piada, porque ambos riram. era um tipo de garimpagem vertical, em que o ouro não era colhido, mas produzido no momento em que atravessava a peneira. eu quis, um pouco, naquela hora, estar lá.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

poema

ninguém, mas ninguém mesmo, conta sonhos como o paulo neves, do blog nolimiar. mas como ele tem contado alguns, me inspirei a contar o que tive esta noite. no sonho, eu lia um poema, mais ou menos assim: oito/ oito/ .../.../.../rua, casa, poste, capim. eu lia e dizia que era um poema sonoro e que era muito difícil lê-lo. alguém se sentou na cadeira em que eu antes estava sentada e disse: esse poema é ridículo e não é sonoro, é mental. retruquei, sentei naquela mesma cadeira e comecei a argumentar, com demonstrações, como o poema era sim sonoro e visual. que as reticências imitavam a palavra oito, que era impossível oralizar as reticências e que o último verso era todo feito de justaposições, sem a presença de um verbo e que isso o tornava muito visual, praticamente cubista. todos riram de mim, eu escorreguei da cadeira e fui deslizando pelo chão, até bater contra a parede. ainda esmagada contra a parede, eu gritava: o poema é sonoro, sim. não é racional! ninguém me entendia, mas não cedi e, mesmo envergonhada e humilhada, mantive minha opinião.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

inverno

toda vez que acontecia alguma coisa ruim, meu pai suspirava e cochichava: "shnatse ha winter", que, segundo ele, era um verso de algum poema e queria dizer: está começando o inverno. mas melhor era o jeito como ele entoava as palavras, como se estivesse cantando ou até vendendo uma mercadoria na feira: "shnaaatse ha wííínter" e tudo bem baixinho. eu olhava assustada. o inverno ia mesmo começar.

sábado, 17 de setembro de 2011

paz

não fui pianista. não fui bailarina. não sei desenhar nem costurar. não falo húngaro. não vou ter uma passagem livre para todos os países a qualquer hora. não contribuí para a paz mundial.não não sou nada. não nunca serei nada. não tive nem tenho todos os sonhos do mundo. agora, agorinha mesmo, o que eu tenho é um pouco de dor de dente e a barra da calça desfiada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

urso


de acordo com o dicionário etimológico, teóricos eram os espectadores dos torneios de esportes gregos. em perspectiva sincrônica da etimologia,acabo de criar o urso teórico,numa flagrante observação de seus colegas de raça em contenda singular.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

fato

às vezes acontecem coisas muito ruins e não há nada a aprender com elas e nem forma de vê-las por seu lado bom. às vezes não há lado bom. paciência, então, que é um tipo de resistência muda e que se estende no tempo. no tempo, essa extensão inexistente cuja presença desafia e cura nosso desejo de mudar os fatos.

sábado, 10 de setembro de 2011

sábado

hoje é sábado. e nas tardes de todos os sábados de todas as semanas de todos os meses dormem um curió e um hipopótamo, acocorando-se sonolentos no mesmo espaço vespertino. de vez em quando, o curió, se espreguiçando, raspa o bico na pele grossa do ventre do hipopótamo. o hipopótamo não percebe. sua pele é muito grossa e para que a bicada o atingisse seriam necessários muitos minutos.outras vezes, o próprio hipopótamo solta um bafo horrendo no meio de um bocejo e o curió acorda, assustado. dá uma espiada na bocarra do companheiro, solta um suspiro e adormece outra vez. hoje é sábado, ele pensa, e não estamos para confusão.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

nariz

o david e eu descobrimos que minha mãe poderia ser uma analista de bagé ao contrário, cujos pacientes rapidamente se sentiriam curados por excesso de delicadeza. ontem ela me ligou para contar que estava muito gripada. perguntei: mãe, você está bem? ela respondeu: estou sim. pelo menos não tenho dois narizes.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

cinismo

ultimamente, tenho ficado extremamente irritada com um cinismo cada vez mais assumido e popular de uma nova direita. é um discurso que se orgulha de desprezar todos os relativismos como levianos,passíveis de manipulações totalitárias e distantes de qualquer noção inegociável como a dignidade, a civilidade e valores éticos estabelecidos. na verdade, ocorre justamente o contrário. só se pode mesmo relativizar as coisas, quando se tem certeza da irredutibilidade de algumas delas. só assim é possível duvidar.

domingo, 4 de setembro de 2011

auspícios

pense bem: existe palavra mais esquisita do que dirimir? por exemplo: você dirimiu a dúvida? e dirimir serve para mais alguma coisa além de dúvida? por exemplo: você dirimiu a equação, dirimiu a conta, dirimiu a dívida? e dirimir dá para ser conjugado de alguma outra forma que não no pretérito perfeito? dá para dizer, por exemplo, eu dirimo dúvidas todos os dias? tchau, estou indo dirimir uma dúvida? e sob os auspícios? será que sob os auspícios é mais ou menos esquisito do que dirimir?

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

mistério

quase sempre penso que o maior mistério que há é o fato de não haver mistério algum e as coisas serem somente o que são, sem nada além disso, o que já é bastante para nós, que não conseguimos sabê-las nem muito menos dizê-las. mas outras vezes, como agora, uma aba sobressalente de algum mistério outro parece sobrar para fora das coisas e eu espio e penso: tem alguém, alguma coisa aí?