terça-feira, 5 de outubro de 2010
tangente
uma das melhores formulações de milan kundera, que é melhor teórico do que escritor - ou melhor, acho que é um escritor teórico - é a seguinte: no tempo de dostoievski, a culpa ia atrás da punição; no tempo de kafka, a punição é que vai atrás do culpado. kafka literaliza nossa culpa incontornável; somos culpados antes de termos infringido alguma lei e a lei não serve para nos proteger, mas para nos punir. a máxima de outro gênio da língua, roland barthes, também cabe perfeitamente aqui: fascismo não é proibir de dizer, mas obrigar a dizer. estamos todos cercados por uma língua cada vez mais carregada de mediações -tecnicismos, jargões - que nos impõe caminhos que percorremos sem perceber e que, quando vimos, já nos levaram à infração. cada vez me parece que a única via é a do jogo dentro deste código: atirar bolinhas de gude na língua, levantar a bola de um jeito tão deslocado, que a língua não consiga cortar de volta. a bola lhe chega torcida e ela se contorce toda para pegá-la. daí sim ela fica nossa amiga e aliada e conseguimos passar, de fininho, pelas tangentes que as senhas deixam largadas por aí.
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